R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Pátrias de Chuteiras

por Gerson Lodi-Ribeiro

noveleta publicada em 07.04.2002

republicada em 11.10.2003

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Pára de achar graça da política de Palmares quando se recorda dos exames de DNA que deverá fazer antes de receber a cidadania plena. As autoridades genéticas da Secretaria de Saúde afirmaram que os exames serviriam apenas para determinar de que tribo africana provieram os seus antepassados, mas Nascimento suspeita de que eles queiram de fato apurar quanto de sangue branco ele possui. Seus amigos brasileiros bem que avisaram que em Palmares a negritude é um assunto sério...
 
"VAMOS REVER AS CAMPANHAS DAS DUAS SELEÇÕES FINALISTAS, DESDE AS OITAVAS-DE-FINAL. PALMARES FEZ UMA CAMPANHA IMPECÁVEL ATÉ AGORA. ESTREOU NAS OITAVAS-DE-FINAL COM UMA GOLEADA DE 6 X 1 EM CIMA DA SELEÇÃO DE CAMARÕES. EM SEGUIDA, VENCEU O QUÊNIA POR 4 X 2 E O PERU POR 3 X 0, CLASSIFICANDO-SE COMO PRIMEIRA DE SUA CHAVE. NAS QUARTAS-DE-FINAL PALMARES ESMAGOU A SELEÇÃO ARGENTINA POR 4 X 0; UM PLACAR REPETIDO CONTRA OS DONOS DA CASA NAS SEMIFINAIS. UM CURRÍCULO E TANTO, SENHORES HOLOESPECTADORES.
"JÁ O BRASIL ESTREOU COM UM EMPATE SEM GOLS CONTRA A NIGÉRIA. A SEGUIR VEIO UM NOVO EMPATE, DE 2 X 2, COM A RÚSSIA, E A PRIMEIRA VITÓRIA, CONTRA A ESCÓCIA, POR 3 X 1. CLASSIFICANDO-SE EM SEGUNDO DA SUA CHAVE, O BRASIL PASSOU PELA INGLATERRA NAS QUARTAS-DE-FINAL, COM O PLACAR DE 1 X 0. NAS SEMIFINAIS, A NOSSA SELEÇÃO CONQUISTOU UMA VITÓRIA DRAMÁTICA, MONUMENTAL, DE 4 X 3, CONTRA A ALEMANHA, A ATUAL CAMPEÃ MUNDIAL, NA PRORROGAÇÃO DE UMA AUTÊNTICA BATALHA CAMPAL QUE TERMINOU EMPATADA EM 2 X 2 NO TEMPO REGULAMENTAR.
"E AGORA, ESTAMOS AQUI, MEUS SENHORES, PRESTES A TRANSMITIR A GRANDE FINAL. ESTA É A SÉTIMA FINAL PARA AS DUAS SELEÇÕES. TANTO O BRASIL QUANTO PALMARES SÃO BICAMPEÕES MUNDIAIS E OS DOIS PAÍSES JÁ SE SAGRARAM VICE-CAMPEÕES QUATRO VEZES. PORTANTO, O VENCEDOR DA PARTIDA DESTA TARDE NÃO SERÁ APENAS O CAMPEÃO DA DÉCIMA QUINTA COPA DO MUNDO, TRICAMPEÃO DE FATO, MAS CONQUISTARÁ A POSSE DEFINITIVA DA TAÇA JULES RIMET. UM TROFÉU QUE JÁ FOI TRAZIDO PARA O RIO DE JANEIRO EM 58 E NOVAMENTE EM 70, E QUE TAMBÉM JÁ FOI LEVADA PARA A CERCA DO MACACO EM 42 E 62.
"PALMARES VENCEU SUA PRIMEIRA COPA DO MUNDO JOGANDO EM CASA, EM 42, AO CONTRÁRIO DO NOSSO PAÍS, QUE PERDEU A COPA DE 50 NA FATÍDICA DERROTA POR 3 X 2 PARA O URUGUAI EM 50, NO ENTÃO RECÉM-INAUGURADO ESTÁDIO MÁRIO FILHO."
-oOo-
O juiz apita o início da partida. Sentado no banco de Palmares, Nascimento observa o primeiro ataque brasileiro. O habilidoso meia Sólon lança entre os defensores de Palmares. O atacante Zequinha recebe livre, dribla o zagueiro Samanco e chuta forte, no ângulo. Nascimento prende a respiração. O goleiro Wirapuru voa para fazer a defesa impossível, espalmando a bola por cima do travessão. As torcidas americana e brasileira ululam irritadas; a palmarina vibra e agita suas bandeiras verde-negras.
Nascimento olha para o lado e vê João Mzambi, o soba da comissão técnica, sorrindo abertamente para ele. Nascimento insistiu desde o início em convocar o tupinambá de mais de dois metros de altura para o gol, apesar das críticas dos dirigentes e dos impropérios da imprensa esportiva palmarina. Foi uma decisão acertada. Ao final das eliminatórias, Wirapuru já era considerado por cronistas esportivos internacionais como o melhor do mundo na posição.
O técnico suspira. Talvez ainda lhe reste alguma esperança em Palmares.
O escanteio é bem cobrado. O atacante Tico sobe mais do que seus dois marcadores e testa firme em direção à meta palmarina. A bola roça o travessão e sai pela linha de fundo. Desta vez todos no banco suspiram de alívio.
Wirapuru se prepara para cobrar o tiro de meta.
 
"ESTA É A TERCEIRA VEZ QUE O BRASIL E PALMARES SE ENFRENTAM NUMA FINAL DE COPA DO MUNDO. EM 58 NA SUÉCIA, VENCEMOS POR 5 X 2, COM TRÊS GOLS DO ENTÃO GAROTO NASCIMENTO. NA SEGUNDA VEZ, QUATRO ANOS MAIS TARDE EM SANTIAGO DO CHILE, COM O REI DO FUTEBOL CONTUNDIDO, PERDEMOS A FINAL POR 3 X 1.
"HOJE, É O ADVERSÁRIO QUE CONTA COM O NASCIMENTO. NÃO COMO O MELHOR JOGADOR DO MUNDO, MAS COMO O TÉCNICO COMPETENTE QUE CONDUZIU A SELEÇÃO DE PALMARES INVICTA NA BRILHANTE CAMPANHA DAS ELIMINATÓRIAS E QUE AGORA..."
 
Nascimento desativa o link outra vez. Não precisa ficar ouvindo essas besteiras de locutor esportivo, enchendo lingüiça quando não tem nada inteligente para falar...
Decorridos sete minutos do primeiro tempo, Ngomo, o grande atacante de Palmares e artilheiro da Copa, recebe um passe cruzado da intermediária pelo ponta-direita Savimbi, mata a bola no peito, gira o corpo no interior da meia-lua, enganando o lateral Rodrigues, vira de frente para a meta brasileira, aplica um drible curto e desconcertante no zagueiro Tucão, e avança livre, chutando da marca do pênalti. Marquinhos salta mas não consegue alcançar a bola, que entra rente à trave esquerda, estufando as redes da cidadela brasileira.
Todo o banco se levanta. Nascimento observa o júbilo da torcida palmarina, as bandeiras desfraldadas tremulando, como se milhares de águias negras voejassem sobre o fundo verde de uma floresta no setor reservado aos turistas de Palmares.
- É isso aí, Nasça! Agora quero ver o desespero dos branquelos correndo atrás do prejuízo! - O técnico ouve Mzambi gritar em seu ouvido em palmarino, apesar de menos da metade dos titulares brasileiros serem realmente brancos.
Embora o português seja um dos idiomas oficiais da Primeira República, muitos sobas conservadores ainda insistem em articular exclusivamente o palmarino, sobretudo, suspira Nascimento, quando falam com um brasileiro radicado. Não se importa. Havia recebido um implante de enzimas mnemônicas com os conhecimentos básicos desse idioma há três anos, quando começou a trabalhar com a seleção de Palmares.
Nascimento sorri para o soba e acena em concordância. É sempre bom estar nas graças de João Mzambi. Ouviu dizer que ele é primo de Lorde Mzambi, o soba que exerce há quase vinte anos o cargo de Primeiro-Ministro de Palmares, e também de Paulo Mzambi, o Secretário de Ciências da Primeira República, atualmente em visita aos Estados Unidos.
"Não aos Estados Unidos, Nasça," Nascimento lembra da correção feita pelo soba da comissão técnica, "mas à sede da Organização das Nações Unidas, onde deverá proferir um discurso de grande importância para o futuro da humanidade."
Enquanto os jogadores brasileiros correm com a bola para o grande círculo e a nova saída é dada, o técnico lança um olhar divertido a João Mzambi. Para os palmarinos, tudo o que fazem ou dizem é de suma importância para o destino da espécie humana. Nascimento pouco se importa com discursos ou política planetária. O que lhe interessa é que o líder científico de Palmares, um autêntico fanático por futebol, está sentado agora nas tribunas de honra, entre o Presidente dos Estados Unidos e o Secretário-Geral da ONU, tendo o Primeiro-Secretário da Confederação Mundial de Futebol apenas uma ou duas fileiras atrás de si.
 
Aos trinta e oito do primeiro tempo, a pressão brasileira é constante, mas a seleção de Palmares resiste bem, toca a bola com calma e categoria, e enceta contra-ataques de extremo perigo.
- Este jogo está parecendo com as guerras que travamos no passado contra o seu país, Nasça. - Comenta Mzambi num palmarino fleumático - O Brasil sempre atacando em massa, dando tudo de si, mesmo quando já não tem nada para dar...

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Pátrias de Chuteiras

Incluído em:

Outras Copas, Outros Mundos

org. Marcello Simão Branco

Ano-Luz (Brasil)

1998

Gerson Lodi-Ribeiro escreveu:

 

Outras Histórias...

Editorial Caminho

Colecção Caminho Ficção Científica, nº 179

1997

 

O Vampiro da Nova Holanda

Editorial Caminho

Colecção Caminho Ficção Científica, nº 187

1998

 

Terror em Pedra Torta

(com Miguel Carqueija)

Gerson Lodi-Ribeiro organizou:

 

Como Era Gostosa, a Minha Alienígena!

Editoria Ano-Luz (Brasil)

2002

(leia a crítica de Eduardo Torres)