A Morte é um Acto Solitário
por Ray Bradbury
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 27.01.2004
Que terá dado à Europa-América para incluir A Morte é um Acto Solitário na sua colecção Nébula, povoada por ficção científica e fantástico desde o arranque, tendo-se aberto apenas a romances pré-históricos que, não sendo estritamente FC&F, partilham com a literatura fantástica muitas características? Será que alguém não leu este romance e, ao ver na capa o nome de Ray Bradbury, presumiu que algo escrito por este autor teria necessariamente de ser FC? Ou será que alguém, mesmo tendo lido o romance, pensou que um livro de Bradbury só iria interessar aos leitores de FC, recusando-se todos os outros a perder tempo com "essas porcarias"?
Ignoro. Mas seja qual for o motivo, é um erro.
Em primeiro lugar, Bradbury já saiu do gueto imposto (e auto-imposto) à FC há muito tempo. Um autor que é publicado na colecção Mil Folhas do Público e que tem um conto incluído na revista Ficções não é autor que só interesse aos cultores do género. É um autor que tem uma audiência bem mais vasta que a dos conhecedores de FC.
Em segundo lugar, este romance não é de ficção científica. Também não é mais uma daquelas histórias tão típicas de Bradbury, passadas num lugarejo perdido no interior da América e de conteúdo fantástico mínimo a inexistente — a americana. Muito menos é um romance fantástico, e de horror tem apenas um leve odor.
Trata-se, no fundamental, de uma história policial atípica e em grande medida autobiográfica. Na primeira pessoa, Bradbury descreve a vida de um jovem escritor pobre, em Venice, um subúrbio de Los Angeles, em meados do século passado, que explode de entusiasmo sempre que consegue vender uma história a uma qualquer revista literária, enquanto à sua volta homens e mulheres solitários vão morrendo, uns atrás dos outros.
As personagens deste romance, com excepção do protagonista, do detective que aquele tenta convencer a investigar como crimes mortes e desaparecimentos que aparentemente não passam de simples acidentes, e mais um punhado de outras, são seres solitários e algo desesperados, ultrapassados pelas novidades do tempo, uma espécie de bolor humano que recobre os lugares decadentes. Venice é o lugar decadente por excelência, um lugar semi-abandonado, construído em torno de um cais ferrujento onde nenhum navio atraca, e cujo comércio vai morrendo por falta de interesse, em completa indolência. A atmosfera é estabelecida logo a abrir:
Nos velhos tempos, Venice, Califórnia, tinha muito que se recomendar àqueles que gostavam de se sentir tristes. O nevoeiro cobria-a quase todas as noites e, ao longo da costa, ouvia-se o queixume da maquinaria de extracção de petróleo [...] Esses eram os tempos em que o pontão de Venice estava a cair, morrendo no mar, e poder-se-iam encontrar os ossos de um enorme dinossauro, a montanha-russa, sendo coberta pelas marés em mudança.
É este o enquadramento das mortes e dos desaparecimentos de pessoas que já não viviam mesmo antes de morrerem. Mortes que parecem acidentais: ora é alguém que escorrega, cai à água e se afoga, ora é uma idosa que morre sozinha em casa, ora é alguém sem família nem amigos que parte para nunca mais voltar a ser visto. Todos os que ficam abanam a cabeça uma ou duas vezes, com tristeza, mas logo em seguida encolhem os ombros e prosseguem as suas vidas. Todos menos o jovem escritor, o qual, devido a repetidos quase-encontros com uma misteriosa personagem que exala forte pestilência e deixa charcos de algas molhadas nos locais onde pára, por vezes, nas imediações dos sítios onde alguém mnorreu ou foi visto pela última vez (ou à porta da própria casa do escritor), se convence de que há alguém que anda a empurrar aquelas pessoas para a morte, confrontando-as com a sua solidão e conduzindo-as a um fim triste e rápido.
Esta personagem, que durante parte do romance é consistente com uma daquelas manifestações sobrenaturais tão típicas das histórias de terror, é o que temos aqui de mais próximo da literatura fantástica. Tudo o resto é inteiramente realista. O nosso escritor procura desvendar o mistério, tentando encontrar o assassino ao mesmo tempo que se esforça, sem grande sucesso, por proteger as possíveis futuras vítimas, muitas delas suas amigas. No processo, confronta-se com a incredulidade de Elmo Crumley, um detective da polícia com o desejo secreto de se tornar, também ele, escritor, e que a páginas tantas começa a acreditar no protagonista e a colaborar com ele na investigação de todos aqueles casos insólitos, ainda que mantendo sempre um paternal cepticismo face aos arroubos mais líricos do narrador.
Este é um óptimo romance, com um mistério que o sustenta e que tem a capacidade de manter o interesse pelo enredo em níveis elevados quase de princípio a fim, com a habitual prosa bradburiana, repleta de uma poesia tão bem conseguida, de um tratamento de linguagem tão refinado, que faz esquecer uma ou outra incongruência, aqui e ali. Um romance de alto nível literário escrito por um autor que por acaso até escreveu muita ficção científica (também de alto nível literário), mas que desta vez não o fez. E apesar disso, vê este livro ser vendido como se de FC se tratasse.
Quanto à tradução... é um pouco ingrato falar sobre uma tradução que até seria de muito bom nível, não fosse o simples facto de a tradutora não dominar a língua portuguesa tão bem como Bradbury domina a inglesa, e ser incapaz, por isso, de encontrar sempre a melhor solução para adaptar as expressões do autor à nossa língua. Deve ser muito difícil traduzir Bradbury, e esta tradução, que num autor menor seria óptima, em Bradbury deixa algo a desejar.
Mas como as deficiências de tradução não são suficientes para baixar a nota, cinco estrelas.
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