R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Fahrenheit 451

por Ray Bradbury

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 07.10.2002

republicada em 14.07.2003

Montag é um bombeiro, e o seu trabalho consiste em queimar livros que nunca leu. Se Fahrenheit 451 fosse um filme de Hollywood, seria provavelmente esta a "tag-line" escolhida pelos estúdios para frase de promoção de uma obra que, se adaptada ao cinema por Hollywood, seria muito diferente, quer do livro, quer do filme de François Truffaut.
Sim, quem não conhece esta história, adaptada ao cinema em 1966, apenas 13 anos depois da primeira edição americana do pequeno romance de Ray Bradbury?
Livro e filme tornaram-se rapidamente em clássicos da ficção científica, especialmente das suas facções mais cerebradas. O filme é fiel ao livro, ainda que numa adaptação cinematográfica a fidelidade nunca possa ser total e, portanto, haja algumas diferenças. Mas o percurso seguido por Montag, de bombeiro igual aos demais a pária, vivendo fora da sociedade, na floresta, rodeado por livros humanos, é idêntico.
No início, Montag pensa que é feliz. Tem um bom emprego, uma família, uma casa cheia dos confortos do seu tempo. A mulher, Mildred, passa horas mergulhada nas circunvoluções da sua "família" virtual, na televisão mural, e por vezes engole doses excessivas de comprimidos que seriam fatais não fora a pronta intervenção dos serviços de saúde, mas também ela pensa que é feliz.
Mas eis que esta felicidade de plástico se quebra quando Montag começa a pensar, se transforma num indivíduo, ganha o sentido da curiosidade intelectual e pergunta a si próprio que haverá naquelas coisas que queima, que leva determinados indivíduos a arriscar a vida para as ter em casa, ou mesmo a renunciar a essa vida quando as suas bibliotecas são descobertas. Montag vai aprender a ler, vai começar a roubar livros e vai ler, vai transformar-se a pouco e pouco num intelectual, o que é o mesmo que dizer num marginal. Tenta fazer com que a mulher comece, também ela, a pensar. Tenta fazer com que os amigos comecem a pensar. Mas acaba denunciado, perseguido como inimigo da sociedade, como traidor, sozinho num mundo que lhe é inteiramente hostil, e não tem outra solução que não seja afastar-se dele, entrar às cegas floresta adentro, fugir, desesperado. Mas é aí que acaba por encontrar a esperança.
Fahrenheit 451 é um livro que começa a tornar-se antigo, e pelos padrões da FC é decididamente velho. Mas lê-lo no Portugal de hoje é arrepiante. Basta ligar o botão do telecomando e olhar cinco minutos para aquilo que a televisão nos apresenta todos os dias, para o lixo televisivo que invade milhões de lares diariamente, neste país e nos demais, para aquela imensa promoção da ignorância e da estupidez, disfarçada do pragmatismo capitalista que busca apenas o lucro. Depois de ler, hoje em dia, este velho livro de Bradbury, é impossível não vermos à nossa volta os milhões de Mildreds que enchem as nossas ruas, demasiado fracas para enfrentar a complexidade do mundo que as rodeia, refugiando-se em telenovelas, concursos, big-brothers e demais programas de vida falsificada em directo, futebóis e telejornais de um jornalismo que, no lugar de informar, as mais das vezes desinforma.
E os livros não são queimados, mas são deixados a ganhar pó nas prateleiras das livrarias, com excepções que muitas vezes são, também elas, veículos promotores de ignorância e incultura, fazendo dos livros mais um dos instrumentos ao serviço dos "bombeiros" do mundo real, instrumentos bem mais subtis que os usados no mundo inventado por Bradbury. Sim, Bradbury não previu o futuro nos seus mínimos detalhes, mas apesar disso Fahrenheit 451 é um terrível espelho dos tempos que vivemos. Um livro intemporal. Um livro que fica.
Quanto à tradução, que se poderia esperar de um nome como Mário-Henrique Leiria, ele próprio um escritor e um amante da ficção científica, que não fosse o melhor? A tradução é excelente, claro está.
Cinco estrelas.

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Fahrenheit 451

por Ray Bradbury

Livros do Brasil

Colecção Argonauta Gigante, nº 6

tradução de Mário-Henrique Leiria

1999

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2002

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e escreveu a introdução e os contos:

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