R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

O Homem Ilustrado

por Ray Bradbury

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 21.05.2005

Os grandes escritores de ficção científica, como todos os grandes escritores, têm um punhado de obras que lhes estabelecem a fama e o estatuto dentro do género e na literatura, mesmo que por vezes essas obras sejam acompanhadas nas suas bibliografias de obras menores, em que o génio se dilui na falta de qualquer coisa, ou até, em certos casos, de muita coisa.
Ray Bradbury é um desses escritores. E o seu génio expressa-se por completo em obras como Fahrenheit 451, nas várias versões de Crónicas Marcianas e... em O Homem Ilustrado.
Este último é um livro que reúne contos sem um fio condutor comum, como vários dos outros livros de Bradbury. Mas ao contrário da maioria, aqui todos os contos são unidos por uma espécie de história / manta de retalhos, uma ideia genial em si mesma: um homem totalmente tatuado cujas tatuagens são simultaneamente uma maravilha e uma maldição, pois ganham vida e contam histórias do presente, do passado e, principalmente, do futuro.
Com um fio condutor destes, as histórias até poderiam nem ser muito boas para que o resultado final fosse notável. Mas acontece que, ainda por cima, aqui se reúnem alguns dos melhores contos do autor americano, obras-primas absolutas, junto com outros não tão extraordinários mas mesmo assim bastante bons, num total de dezoito.
E o começo é de arromba. O «Veldt» é uma daquelas histórias que ficará para sempre no Olimpo da FC mundial. Misturando de forma magistral a FC e o horror, Bradbury constrói uma história em que um conflito entre pais e filhos acerca de uma sala holográfica (ou será mais do que isso?), onde a savana africana é uma presença constante, tem um desenlace tão inevitável como terrível.
Quase tão bom é o conto seguinte, Caleidoscópio, onde homens lançados ao espaço pela destruição da sua nave espacial contemplam a inevitabilidade das suas mortes, todas diferentes mas todas iguais no resultado final, ligados uns aos outros apenas pelos ténues fios dos rádios dos seus fatos espaciais. E a altíssima qualidade prossegue com O Outro Pé, um conto profundamente americano em que os negros, que tinham partido para colonizar Marte, se vêm confrontados com a chegada de uma nave tripulada pelos seus antigos opressores brancos. Mas a história que os recém-chegados têm para contar é tão terrível que a vingança que já estava preparada perde todo o significado.
Os contos seguintes (A Auto-Estrada e O Homem) são um pouco menos bons, mas o sexto, A Grande Chuva, regressa à qualidade suprema. Um grupo de náufragos espaciais procura em Vénus as "abóbadas solares", locais de colonização humana no planeta, desesperadamente necessárias à sua sobrevivência. Mas não encontramos aqui o Vénus real: encontramos o Vénus que se especulava antes das missões espaciais, um mundo em dilúvio permanente, coberto por uma selva luxuriante e de vida explosiva. É neste ambiente que os homens se vão, a pouco e pouco, deixando submergir, vão desistindo, se vão perdendo. Sublime, mesmo que ultrapassado pelos acontecimentos e conhecimentos posteriores (o conto é de 1950).
O Astronauta e A Última Noite do Mundo são dois contos um pouco menos bons, ambos em ambiente melancólico. O primeiro centra-se sobre o que sente um miúdo cujo pai é astronauta e leva a vida a abandoná-lo e à mãe para partir para as estrelas, e o segundo mostra-nos o que faz um casal na última noite antes que tudo acabe. Também não muito bom é o conto seguinte, Os Exilados, uma daquelas histórias muito típicas de Bradbury onde ele homenageia os escritores que admira. Estes contos têm os seus apreciadores, mas nunca consegui achá-los tão bons como muitos dos outros contos bradburianos.
Depois, chega Em Nenhuma Noite ou Manhã em Especial, mais um conto magnífico que mostra como um tripulante de uma nave espacial se vai encerrando aos poucos num casulo de solipsismo cada vez mais extremo, duvidando cada vez mais radicalmente da realidade exterior à sua própria mente. Também excelente é A Raposa e a Floresta, um conto de viagem no tempo, em que um casal de um século XXII que detesta profundamente resolve refugiar-se nos anos 30. Mas são seguidos por um polícia temporal que não se deixa enganar pelos seus disfarces.
O Visitante é outra história que tem aspectos menos interessantes (especialmente porque muito do que ela contém se pode encontrar também, com pequenas alterações, noutros contos de Bradbury), mas que mantém um nível de qualidade alto. Um homem chega a Marte. Não um homem vulgar, no entanto: um homem capaz de gerar nos outros a ilusão de que se encontram noutros tempos e lugares. Inevitavelmente, começa a ser disputado por todos os nostálgicos da Terra que pretendem voltar a ver aquilo que deixaram para trás quando partiram para Marte. O final não pode ser feliz.
Menos bom é também o conto que se segue, A Misturadora de Cimento, no qual uma invasão marciana da Terra depara com um tipo de resistência completamente inesperado. Marionetas, Inc. também não é dos melhores contos do livro, retratando o velho tema (embora em 1949 não fosse assim tão velho) da substituição do humano pelo artificial.
Segue-se A Cidade, um dos magníficos contos bradburianos sobre as muito velhas cidades de Marte. Neste conto, uma cidade há muito abandonada mantém, no entanto, uma vida latente e mecânica à espera do regresso dos seus construtores. Quando os homens chegam, a Cidade tem de analisá-los para saber se são aqueles que ela espera. Mais uma óptima mistura de FC com terror, do mesmo tipo da de Hora Zero, conto em que uma invasão alienígena se processa pela substituição das crianças por simulacros, que depois vão caçar os adultos. Também não é das melhores histórias deste livro, mas é igualmente um conto de muito alta qualidade.
E faltam dois contos. O primeiro, O Foguetão, é uma história comovente sobre uma família pobre que, apesar dos sonhos, não tem dinheiro para embarcar em viagens de foguetão pelos planetas. Mesmo assim, o pai usa as suas parcas poupanças na compra de um velho foguetão avariado, com o qual vai levar os filhos e a mulher em viagens pela imaginação. O último, O Homem Ilustrado, conta o modo como o sr. William Philippus Phelps se transformou no Homem Ilustrado, e aquilo que lhe aconteceu depois. Outra obra-prima, esta de terror ou fantasia, o único remate possível para um livro como este.
O Homem Ilustrado é um livro extraordinário. Apesar de já ter sido anteriormente editado em Portugal, e embora com tantas obras recentes de FC de grande qualidade os fãs se sintam sempre um pouco defraudados quando as editoras resolvem reeditar trabalhos antigos, a verdade é que este livro merece todas as reedições que se lhe façam. Esta tem os bónus de uma introdução escrita por Bradbury em 1997 e uma tradução que desta vez é de boa qualidade e faz justiça ao livro. Uma obra-prima: ★★★★★

Gostou deste texto? Ajude-nos a oferecer-lhe mais!

 

O Homem Ilustrado

por Ray Bradbury

Publicações Europa-América

Colecção Nébula, nº 93

tradução de Maria João Freire de Andrade

2004

Críticas a outras obras de Ray Bradbury

A Morte é um Acto Solitário

As Maçãs Douradas do Sol

Cântico à Humanidade

Fahrenheit 451

O Mundo Marciano

Regresso das Cinzas

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

Artigos de Jorge Candeias

Críticas de Jorge Candeias

Entrevistas de Jorge Candeias

Jorge Candeias - página de autor