Não Verás País Nenhum
por Ignácio de Loyola Brandão
uma crítica de Gregório Dantas
publicada em 14.06.2002
republicada em 27.06.2003
Uma Ficção Científica de 3º Mundo
O aparente sucesso que a reedição da obra de Ignácio de Loyola Brandão tem alcançado deve-se, em grande parte, à atualidade que alguns temas recorrentes em sua obra ainda mantêm. Este é o caso de um de seus romances mais vendidos, Não verás país nenhum, publicado pela primeira vez no já distante 1981. Segundo Fausto Cunha, "o escritor de FC inteligente sabe de duas coisas: escreve para o leitor de seu tempo, que possui problemática própria; e escreve sabendo que seu futuro e seus mundos imaginários são meras extrapolações acessíveis ao homem de hoje" (in "Ascensão e queda da ficção científica", Revista Civilização Brasileira n. 13, maio de 1967). Não verás país nenhum não foge à regra. Embora suas previsões não sejam exatamente realistas - às vezes ingênuas, outras completamente fantasiosas - elas conseguem, através da deformação e da extrapolação de problemas atuais, não apenas expô-los claramente como lhes conferir um estatuto de inevitável catástrofe, o que garante ao texto a tensão esperada de uma obra do gênero.
Muito dessa tensão deve-se à ambientação do enredo: o clima, o ar, a superpopulação, o limite de movimentos e as roupas padronizadas criam uma atmosfera opressivamente incômoda. Tal atmosfera, notável também em alguns de seus contemporâneos, ganha uma inevitável leitura alegórica quando observada em seu contexto. Zero (1975), também de Loyola Brandão, O fruto do vosso ventre (1976), de Herberto Sales, Os pecados da tribo (1976) e Aquele mundo de Vasabarros (1982), de José J. Veiga, entre outros, são romances que criaram comunidades fantasiosas interpretadas correntemente como uma alegoria do regime militar sob o qual foram geridos. Em comum, o fato de estes enredos caírem sempre na mesma estrutura: a descrição de um regime totalitário e a reação de um homem em busca de sua humanidade, o indivíduo contra a ditadura instaurada.
Loyola Brandão localiza sua história em um futuro próximo, quando São Paulo torna-se uma cidade ainda mais subdividida em castas sociais. Cada cidadão pode circular apenas por determinadas áreas da metrópole superpovoada, já que não há lugar para todos. O meio de transporte mais comum é a bicicleta, depois que um colapso no tráfego impossibilitou definitivamente a circulação de automóveis. Não há água nem comida suficiente, tendo se instaurado uma situação de racionamento permanente. Vive-se um clima de constante ameaça, sente-se que as estruturas sociais estão ruindo.
Mas é preciso manter a ordem, obtida pelo Esquema - o sistema governamental em vigor - através de expedientes comuns ao gênero FC: uma propaganda ostensiva, capaz de transformar a destruição da Amazônia, agora um gigantesco deserto, na 9ª maravilha do mundo; a eliminação da memória coletiva, através da proibição de livros, jornais, perseguição aos professores e fechamento das universidades; vigilância ostensiva de uma divisão extrema da sociedade, com áreas delimitadas para cada classe social; centralização total do poder em uma elite que domina e tem liberdade irrestrita de comando, acesso à informação e se mantém protegida das pestes e da temperatura abrasadora.
Não tardará ao leitor identificar este romance como descendente direto do clássico de George Orwell, 1984. Ao contrário, porém, da organização impecável do sistema em 1984, ou do desenvolvimento social do Admirável mundo novo de Huxley, o Esquema de Loyola Brandão não consegue domar completamente o individualismo nem tampouco manter a ordem. Não apenas a subversão é inevitável, como nasce do grande número de excluídos do Esquema: deformados, maltrapilhos, débeis, a excrescência do sistema. Deste modo, o conceito de tecnocracia suprema é ridicularizado, nas palavras de uma das personagens: "Lembra-se quando líamos os livros de Clarke, Asimov, Bradbury (...)? Eram supercivilizações, tecnocracia, sistemas computadorizados, relativo - ainda que monótono - bem-estar. E aqui, o que há? Um país subdesenvolvido vivendo em clima de ficção científica".
Comum também aos romances de Herberto Sales e J. J. Veiga, que ridicularizam igualmente as formas de poder (representadas por personagens caricatas e envoltas em exagerado non-sense), a incompetência do Esquema não impede que os castigos conferidos aos seus cidadãos sejam tão cruéis quanto as torturas a que é submetido Wiston Smith, de 1984.
É neste contexto que o ex-professor de história e agora burocrata Souza, pacato cidadão, casado, gradativamente passa a se desviar de sua rotina. Um furo em sua mão (exatamente como em um conto de Brandão presente em Cadeiras proibidas, de 1976) motiva o crescimento de sua insatisfação. Quando abandona o emprego e dorme pela primeira vez fora de casa, Souza perde definitivamente sua confortável condição burguesa. A esposa o abandona, e uma sucessão de eventos o tornará um excluído, primeiro de sua casa, depois da cidade.
A questão é existencial. Negado o direito de ir e vir, impossibilitado de se comunicar clara e eficazmente, Souza pode ser considerado representante de um personagem tipo na ficção brasileira, principalmente a partir dos anos 60. O homem é desumanizado porque subjugado por um sistema absurdo. Não é possível exercer sua individualidade, é preciso estar de acordo com sua casa, seu condomínio, sua classe social, sua cidade. Como em frente a uma "teletela", é impossível esconder-se: "O fiscal pode ser o homem à sua frente, ao lado. Em qualquer parte" (p.41).
O tempo parece não existir. Antes da "rebelião" de Souza, de sua tomada definitiva de consciência, o calendário em sua casa marcava o dia 1º de Janeiro, durante todo o ano. Sua rotina era implacável, seu trabalho uma inócua repetição burocrática exercida por "homens-mesa, homens-gaveta, quietinhos, obedientes" (p. 115). Seria oportuno evocar o clássico ensaio de Gunter Anders sobre Kafka, em que o crítico aponta o absurdo do "homem-profissão" kafkiano, materialização de um modelo tangível na realidade moderna, o homem cuja existência limita-se à função que desempenha dentro de um sistema maior.
Restaria, portanto, ao acuado homem-profissão, a reflexão sobre sua condição, possível saída para o absurdo. Mas toda tentativa investigativa acarreta um combate já perdido. Primeiramente, porque é fundamental ao Esquema apagar a memória coletiva, indispensável ponto de partida para uma reflexão crítica: "Julgamento da história? Aqueles homens pretenderam eliminar a história, tentando apagar o futuro" (p. 104). Como os livros queimados em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, ou a literatura proibida no Admirável mundo novo, eliminar a arte e a documentação histórica é eliminar a individualidade crítica. Depois, prega-se a substituição do passado pelos dogmas do Esquema, através da incansável propaganda e seus slogans obsessivos. A história é reescrita de modo semelhante a 1984. A lobotomia é tamanha que não existem mais referenciais de comparação. A verdade é esta em que se vive, sem possibilidades de questionamento: "Convivi com a distorção, aceitei-a como realidade. Também já perdemos o conceito de real" (p. 217).
Ao que leva a busca de Souza? Sua profissão primeira, de ensinar e preservar a memória histórica, foi abolida. Fugitivo de sua nova classe, uma burguesia estúpida, resta-lhe a convivência com os excluídos, cuja humanidade não é mais do que uma lembrança distante em seus corpos disformes. Vivem em meio ao lixo, aos cadáveres, não lhes restando sequer o automatismo burguês. A saída seria a patética resistência de jovens como seu sobrinho, aparentemente combativo ao status quo, mas corrompido ao modo de ser de seu tempo a ponto de ser tão dogmático quanto aqueles que diz combater. Não à toa, são ele e Elisa, esta estranha jovem universitária que vive nas ruas, que constantemente repetem a Souza o quanto ele é "antigo" (a história, descobrimos atônitos, é narrada para leitores do passado, o nosso presente). O ex-professor faz mais perguntas do que é possível responder: "Que aconteceu nesses lugares? Se dissermos a verdade, ultrapassaremos os limites do inacreditável" (p.198).
E de fato, os limites da realidade são expandidos. Em dado momento, a imaginação de Souza e a realidade mesclam-se de tal forma que se tornam indissociáveis. O buraco na mão fora de fato uma alucinação? Outras pessoas também não o viram? Ou foram "inventadas" por Souza? As fantasias e pesadelos que compartilhava com a esposa adquirem concretude. São tão reais quanto qualquer outra lembrança, surgem como inevitáveis substitutos para a memória histórica e individual que foi perdida. Este amálgama entre real e irreal é a concretização, na consciência deste ex-professor, agora mendigo, de uma realidade há muito palpável, incompreensível a quem procura conferir-lhe uma lógica passada, superada. Como mostra este diálogo, em que um migrante é questionado por Souza sobre o quão forte é o sol no Nordeste. A resposta transforma a figura de linguagem em realidade. O figurado, ao final da resposta, é literal.
"- De rachar a cuca, como se dizia antigamente?
- Rachava a cuca, moía os ossos, dissolvia a pele." (p.197)
O livro não é, portanto, apenas um exercício de projeção do que está por vir, uma fantasia sobre o futuro, mas o desenvolvimento de uma alegoria sobre o inevitável absurdo em que se enreda o homem moderno (e não apenas o brasileiro médio burguês do início dos anos 80). Absurdo que encontra sua melhor personificação em Elisa. Incapaz de dialogar com Souza, pois não compreende perguntas que só fariam sentido em um passado irremediavelmente perdido, ela jamais terá plena consciência de sua situação. Reduzida à sexualidade mais primitiva, capaz de sentir e provocar prazer em meio às excrescências de um estranho, a ex-universitária agora se restringe a sobreviver, bestializada.
Gostou deste texto? Ajude-nos a oferecer-lhe mais!
|