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Memórias Encontradas Numa Banheira

por Stanislaw Lem

uma crítica de Marcello Simão Branco

publicada em 16.09.2001

republicada em 15.06.2003

Recentemente terminei de ler o romance Memórias Encontradas numa Banheira, do Stanislaw Lem. Se fosse possível definir em uma palavra, ela seria "angustiante".
Lem é um autor bastante complexo do ponto de vista temático e intelectual. Sua verve satírica por vezes chega ao limite deste recurso, tornando-o incômodo, absurdo, amargo.
Este livro é o que poderia ser chamado de um dos mais "kafkianos" já escritos. Em qualquer relação dos livros que mais levam à frente as influências do imaginário e temática de Franz Kafka, este estaria na linha de frente, sem fazer feio ao que concebeu o escritor tcheco.
Lem é cuidadoso e esperto o suficiente para não se calcar numa leitura explicitamente kafkiana, recusando a fácil acusação de estar realizando mais um dos famigerados pastiches.
O autor polonês recobre a prosa de uma situação tão absurda, que o próprio personagem que se indaga do absurdo em que está inserido, transforma-se, ele mesmo, no próprio absurdo.
Memórias Encontradas numa Banheira divide-se em duas partes claramente distintas. E o que torna o livro classificável como FC é o recurso à ciosa e interessantíssima introdução (que vale por si), às "memórias" propriamente ditas.
Uma praga de origem cósmica detona todos os papéis de nosso planeta. Os que existem e os que são construídos. Todos os documentos, registros, livros e fontes de conhecimento e comunicação da humanidade baseados no papel são perdidos.
Entramos em colapso e no futuro distante, paleógrafos acham um manuscrito dentro de uma banheira em uma fortaleza subterrânea. E passam a decifrar o significado deste manuscrito, as memórias propriamente ditas, que passam a ser narradas em primeira pessoa, pelo sujeito que se transformará no peregrino do absurdo, do insensato, do desatino sem fim, de um ir e vir em corredores, salas, escritórios, portas e elevadores à procura das instruções de sua missão, seja ela qual for.
Lem faz um libelo contra a onipotencia do Estado totalitário. Sim, totalitário e e não autoritário, pois em sua fortaleza subterrânea de inspiração político-religiosa todos são servidores cegos de uma ordem de reconstrução do mundo, só que esta ordem propriamente dita, dilui-se no próprio absurdo de regras, ordens e procedimentos já sem sentido, porque não questionados, apenas seguidos numa corrente sem fim de ordens, contra-ordens, ditames e não-ditames, onde a forma vale mais que o conteúdo, sem que se perca de vista o peso da ideologia fundadora, mesmo que ela, em si, não faça mais sentido para ninguém individualmente.
Se o foco de Lem é o socialismo polonês, reprodutor imposto do soviético, sua alegoria política supera sua crítica factual, porque ela fala, em ampla escala, de todas as formas de opressão e do nonsense maior da suprema burocratização de todas as formas de relacionamento, no qual, nenhum humano é mais humano, pois não se reconhece nenhuma chance de individualidade e espírito crítico, num regime monolítico e opressor.
No fim da jornada (e do livro) nos resta apenas um sorriso amargo e melancólico e uma sensação de angústia e libertação. Pena que o personagem que vislumbra uma saída do terror no fim, acaba imerso em seus próprios medos e suas dúvidas e se imiscua no terror que em vão ele procurou entender.
Uma obra inteligente, instigante, que completa 40 anos este ano e mantém sua atualidade como crítica constante que se pode fazer a qualquer forma de organização social que não priorize a liberdade individual e a pluralidade de escolhas e expressões humanas.

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Memórias Encontradas Numa Banheira

por Stanislaw Lem

Editorial Caminho

Colecção Caminho Ficção Científica, nº 1

tradução de Manuela Alves

1984

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