R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

A Manopla de Karasthan

por Filipe Faria

uma crítica de Ricardo Loureiro

publicada em 26.06.2002

republicada em 06.08.2003

Nos meus tempos longínquos de estudante tinha uma cadeira de marketing em que, entre outros assuntos, se abordou o marketing mix. É-me hoje evidente que alguns dos meus antigos colegas de curso foram trabalhar para a Editorial Presença. Senão de que outra forma se pode justificar a publicação de A Manopla de Karasthan?
Veja-se a confluência de propostas, ou por outras palavras o marketing mix que se gerou. Por um lado, de há uns anos a esta parte, a Devir tem vindo lenta mas seguramente a invadir o tempo livre dos jovens com um jogo de cartas bastante popular, Magic: The Gathering, que criou a consciência de universos de fantasia (mesmo que de papelão). A reboque começou a ler-se Tolkien, que há muito fora publicado em Portugal por mão da Europa-América, na colecção Século XX, e do lado feminino devemos apontar o dedo à Difel com a edição de As Brumas de Avalon. Começava-se a criar uma necessidade básica de mais e maiores produtos ligados ao fantástico. Este nicho de mercado é ainda mais profundamente explorado pelos produtos representados pela Devir, como o Dungeons & Dragons, e pelos jogos de PC e consolas, como Baldur's Gate, Neverwinter, Final Fantasy, etc.
É neste contexto que surge também Harry Potter, levando o fantástico a esferas nunca antes possíveis de imaginar em Portugal. De um momento para o outro toda a gente lia e jogava fantasia. O culminar desta ascensão de ganho de consciência sucede com a estreia quase simultânea dos filmes inspirados nas obras de Rowling e Tolkien.
As sementes tinham sido lançadas e agora era tempo de recolher os frutos. Mas no meio desta colheita surgem alguns frutos que ainda precisavam de amadurecer ou que estão simplesmente podres.
O caso d'A Manopla de Karasthan é sintomático da posição dos editores portugueses no mercado. Seguem as modas em vez de as criarem, imitam em vez de inovarem. A questão que frequentemente me surgiu no espiríto aquando da leitura deste livro foi a de se seria possível Filipe Faria ter ganho o prémio Branquinho da Fonseca e ser publicado se não fosse o «clima» actual de mercado? Sinceramente, duvido muito. Isto porque embora o livro não seja de todo mau, é apesar de tudo uma obra amadora, desinspirada, derivativa e sem resolução. Faria limita-se a apresentar um esboço de campanha para jogos de Role Play sob a capa de um romance ambicioso, mas é de todo evidente que não tem controlo sobre o material, nem apresenta inovações à opressiva fórmula que permeia a high fantasy comercial dos anos 80/90. Há por aqui todos os sinais de alguém que se encontra encerrado num universo restrito de influências. De facto, o próprio autor «confessa» que os seus gostos são limitados.
O livro, que se insere numa ambiciosa série de sete volumes, relata a demanda do jovem Aewyre Thoryn, filho mais novo de Aezrel Thoryn, herói de Allaryia, e que se presume morto na batalha de Asmodeon. É para lá que o jovem guerreiro segue, levando consigo a espada Ancalach, antiga pertença de seu pai, e que encerra em si um segredo. Pelo caminho, e na tradição de incontáveis aventuras de Role Play, encontra outros guerreiros sedentos de aventuras que se unem num grupo algo instável, sendo que o perfil dos personagens encaixa como uma luva nas famosas classes criadas para o não menos famoso Dungeons & Dragons. Segue-se uma série de lutas com monstros estereotipados, fugas, mortes, salvamentos in extremis, todos amontoados e sem grande razão de ser senão o mero preencher de páginas com «acção», no claro intuito de manter presa a atenção do leitor. Ora acontece que para leitores mais sofisticados esta narrativa tem exactamente o efeito contrário, porque o uso de clichés e fórmulas só quando muito bem estruturado e «escondido» sob uma capa de alguma originalidade é que surte efeito. Caso contrário, o leitor perde a suspensão da descrença e fica apático perante aqueles acontecimentos inverosímeis que mais não são do que o desfilar de um catálogo de proezas heróicas, ocas de sentido e direcção.
Carregando às costas o prémio Branquinho da Fonseca, é-me impossível discernir o que levou o júri a considerar ser este o livro merecedor de tal galardão. O que leva a crer que, das duas uma, ou o júri desconhece por completo o que de melhor se faz actualmente no ramo da literatura de fantasia ou, pressionado para atribuir um prémio, decidiu-se pelo menor dos males, o que não fala muito em abono das restantes obras a concurso.
É assim que, mais uma vez, o público é sujeito ao que de pior pode haver dentro do género, garantindo assim aos detractores munição para os canhões da crítica.
Apesar disso, e no bom e velho espírito do compadrio nacional, o Expresso publicou uma crítica que levará concerteza os mais incautos a pensarem estar perante uma obra-prima da literatura. Não é verdade, e nem mesmo a idade do autor pode desculpar a aridez de conceitos, a falta de jeito e a usurpação de materiais já por outros melhor explorados.
Numa nota final positiva, saliente-se a qualidade técnica da impressão e encadernação deste livro, que surge a um preço atraente e com uma distribuição nacional competente. Pena é que o conteúdo não esteja ao nível da execução técnica editorial.
Um livro a evitar por quem preza o seu tempo.

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A Manopla de Karasthan

por Filipe Faria

Editorial Presença

2002

Críticas de Ricardo Loureiro