Kalpa Imperial
por Angélica Gorodischer
uma crítica de Luís Rodrigues
publicada em 29.06.2005
As Mil e Uma Noites Argentinas
"A história não se repete, mas a verdade é que rima."
— Mark Twain
Kalpa Imperial de Angélica Gorodischer é, em poucas palavras, um livro maravilhoso, uma colecção fragmentária de instantâneos do "maior império que nunca existiu", onde a volatilidade e a natureza venenosa do poder desempenham um papel crucial no desenrolar dos acontecimentos. Gorodischer escreve com elegância onírica (e perfeitamente transposta para o inglês na tradução de Ursula K. Le Guin), e embebe as suas histórias na intemporalidade dos contos de fadas ao adoptar as ferramentas da narrativa oral para as transmitir ao leitor, o que faz com que se sinta envolvido pela atmosfera de uma versão argentina das Mil e Uma Noites.
Quiçá seja inevitável uma comparação do mundo de Kalpa Imperial à Terra Média, embora Gorodischer filtre a sua criação através da névoa do tempo e da memória, ao contrário de Tolkien, cujo cânone só parcialmente bem definido pode levar à fragilização da credibilidade do ambiente. Embora o trabalho de Tolkien não seja menos admirável por isso, a verdade é que a Terra Média se encontra demasiado apertada no cerco da sua própria — e incompleta — sistematização para suportar consistentemente as suas histórias do mesmo modo gracioso, como que por um véu de sonhos, que o cenário criado por Gorodischer propicia. Em Kalpa Imperial, o império é um lugar incerto, despojado de absolutos morais e sujeito aos múltiplos embelezamentos e interpretações dos contadores de histórias e dos seus ouvintes. É um trabalho mais próximo dos de Lorde Dunsany, Mervyn Peake, Italo Calvino e Jorge Luis Borges do que de Tolkien propriamente dito, ainda que a influência deste último se note em menor grau.
Um dos contos (ou capítulos, caso o leitor prefira encarar Kalpa Imperial como um romance em mosaicos) mais emblemáticos da obra pode ser encontrado em Concerning the Unchecked Growth of Cities, uma sucessão desenfreada de metrópoles calvinescas, mas que na realidade são o mesmo lugar, que atravessa ciclos alternados de prosperidade e decadência, diferentes funções e graus de popularidade, enquanto imperadores chegam e partem com o passar dos séculos, até ser finalmente abandonado para sempre... ou talvez não. Possivelmente um dos melhores capítulos do livro, em conjunto com The End of a Dynasty, or The Natural History of Ferrets, cuja crítica da tradição e cujo jovem e rebelde protagonista fazem lembrar a trilogia Gormenghast, de Mervyn Peake. Digna de nota é a contenção de Gorodischer, em The Natural History of Ferrets, ao deixar o óbvio por dizer, mantendo assim o conto num equilíbrio delicado que o torna ainda mais memorável. Um escritor menor teria arruinado a história, e ainda que Gorodischer pudesse ter sido mais subtil, trata-se de uma mudança refrescante relativamente aos que não têm consideração pela inteligência dos seus leitores e sentem a necessidade de lhes explicar tudo.
Kalpa Imperial termina com a história dos primeiros anos do Império, uma tecedura surpreendente, divertida e completamente mirabolante de mitologia grega e Hollywood (a mitologia dos nossos dias, poder-se-ia dizer), de cultura moderna e de política:
"Well, then, Yeimsbón got married too, when he was old enough, to a woman who was also very beautiful but bossy and ambitious, named Magareta'Acher, and they lived in the city of Erinn, where after a short time Yeimsbón was made king, on account of his valor and goodness. They had a son called Yanpolsar and a daughter called Bernadetdevlin. The two children grew up adoring their father, who was gentle and loving to them, and learned to hate their mother, who was hard and harsh and punished them often..."
Humorístico? Sim. Mas também uma lembrança sinistra de que nem as sociedades actuais, nem a memória dos seus actos, sobreviverão para sempre, muito menos intactos. De facto, a natureza cíclica do Império é sugerida logo desde o primeiro conto — e outros há que voltam a tocar no tema —, no qual a civilização é condenada a repetir a história e cometer os mesmos erros de cada vez que é destruída e refeita. O próprio título refere-se aos kalpas védicos, ciclos cósmicos de 4300 milhões de anos ao fim dos quais o universo é destruído para dar lugar a um novo mundo.
A tradução inglesa de Kalpa Imperial é publicada pela Small Beer Press, que merece ser elogiada e encorajada a continuar a editar literatura não-anglófona, especialmente se for de tão alta qualidade quanto esta. Despertou-me também a curiosidade acerca do restante trabalho de Gorodischer, que tentarei procurar em espanhol. Suponho que os nomes das personagens e dos lugares de Kalpa Imperial soem muito melhor na sua língua original.
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