The Iron Dragon's Daughter
por Michael Swanwick
uma crítica de Luís Rodrigues
publicada em 10.05.2005
Produtos da febre comercial gerada pelo enorme sucesso d'O Senhor dos Anéis de Tolkien, têm desabrochado (primeiro no estrangeiro desde a década de 70 e agora também em Portugal) séries intermináveis de fantasia épica, de qualidade duvidosa e nada mais que clones menores da obra do velho professor. O que todas elas têm em comum, para além do moralismo míope que herdaram e da pobreza literária cada vez mais acentuada, é o facto de nenhuma trazer nada de novo ao género. Limitam-se antes a recolher os conceitos mais apelativos, bem conhecidos dos contos de fadas tradicionais, e dar-lhes um toque de falsa modernidade para camuflar alguns dos tiques mais conservadores do punhado de escritores que pretendem emular — não apenas J. R. R. Tolkien, como também, ainda que em menor grau, C. S. Lewis.
Pior que isto, só mesmo os clones destes clones.
Urge portanto reinventar um género em crise de significados e imaginação, e é neste contexto que se torna imprescindível a leitura de obras como The Iron Dragon's Daughter do escritor norte-americano Michael Swanwick, que demonstra habilmente tudo o que a fantasia épica não é, e que, pelo andar das coisas, nunca será.
The Iron Dragon's Daughter surpreende por reutilizar muitos dos clichés conhecidos da fantasia convencional ao mesmo tempo que os desanca alegremente ao virar de cada página. E embora possa parecer que o único objectivo do livro é subverter as figuras de elfos, dragões, duendes e afins, Swanwick liberta o verdadeiro potencial escondido sob as camadas poeirentas destes e outros tropos numa orgia anárquica, excitante e invulgar.
A palavra orgia não surge aqui por acaso: toda a história vibra sob a superfície com fortes tensões sexuais e é frequentemente explícita na representação da sexualidade. A narrativa acompanha a protagonista Jane Alderberry ao longo da adolescência, com todas as descobertas e incertezas que lhe são características, desde os dias na fábrica que explora trabalho infantil para construir dragões (uma das situações iniciais é de facto a primeira menstruação de Jane, que a salva de um possível contacto pedófilo com o supervisor), até aos anos de universidade onde aprende a utilizar o sexo como catalizador de poderosa magia e instrumento de domínio sobre outros.
Por esta altura convém fazer uma comparação com a fantasia mais conservadora, onde é bastante raro encontrar uma personagem feminina com o mesmo protagonismo e poder que Michael Swanwick confere a Jane Alderberry. Onde quer que os unicórnios se deixem apanhar apenas por uma virgem, a castidade das donzelas é proclamada virtude com o intuito básico de as castrar.
É orgia também no sentido de haver em The Iron Dragon's Daughter uma fusão de temas fantásticos e da ficção científica. No mundo de Jane, elfos e fadas coexistem com tecnologia de ponta; e os dragões psicopatas, máquinas de guerra na melhor aceitação do termo, são criaturas tão mágicas quanto cibernéticas.
De notar ainda que a visão de Swanwick acaba por dever mais à verdadeira mitologia celta do que às versões aguadas da fantasia recente, um pouco a lembrar o tratamento (também subversivo, porém flácido em comparação) que Terry Pratchett deu aos elfos de Lords and Ladies. Em The Iron Dragon's Daughter, a cruel fair folk manifesta-se como elite social que explora e oprime as massas tanto física como intelectualmente: as fábricas de dragões pertencem-lhes, bem como as estações de televisão com a sua programação degradante; e os estabelecimentos de ensino excessivamente burocráticos, repletos de docentes sádicos e saturados em tradições tão brutais quanto incompreensíveis.
Como personagem principal, Jane destaca-se pela sua complexidade. Apesar de ladra e até assassina consegue mesmo assim conquistar o coração dos leitores pela sua rebeldia e compaixão para com os amigos. Criada num ambiente de revolução industrial, à boa maneira Dickensiana, Jane esbarra com Melanchton, um velho dragão que nutre profundo desprezo pelos seus senhores e que pela necessidade de um piloto engendra a fuga de ambos. Porém, a partir daí o dragão virtualmente desaparece, deixando a sua sombra pairar sobre a vida de Jane e emergindo apenas quando convém aos seus planos maquiavélicos.
Tanto Jane como Melanchton são rebeldes, porém com motivações totalmente distintas, o que resulta numa atribulada e perigosa relação entre ambos. Ao mesmo tempo que procura libertar-se da influência silenciosa de Melanchton, Jane sente-se atraída pela dívida que tem para com o dragão, bem como a aversão à autoridade partilhada pelos dois. Contudo, o ódio de Melanchton é tão profundo que apenas um desfecho niilista o satisfaz, sendo que Jane — e Swanwick — acabem por traçar aí o limite da sua simpatia.
Melanchton é como um pai, tal como o título do livro sugere. Um pai muitas vezes ausente em corpo mas nunca em espírito. Contudo, a omnipresença impalpável do dragão não significa que este seja responsável pelas decisões de Jane, mesmo que tal às vezes o pareça. Para citar um exemplo, Jane implica o monstro como culpado (através de desígnios convenientemente obscuros) pela perda da sua virgindade e por todas as consequências que daí decorrem. Uma das várias questões levantadas pelo livro é precisamente a inexistência de uma divindade que governe o mundo em oposição à necessidade que uma exista (mesmo que em teoria) e que assim escuse a sociedade de toda e qualquer responsabilidade sobre o seu destino. Responsabilidade e destino são aliás dois temas que se entrecruzam repetidamente ao longo do livro.
The Iron Dragon's Daughter é um romance obrigatório, que critica e subverte as tristes simplicidades escapistas e moralizadoras pregadas pela fantasia convencional, ao mesmo tempo que remete para questões quentes e reais como a droga e a sexualidade, ou as discriminações de classe e raça, onde absolutos como o Bem e o Mal não encontram qualquer expressão ou significado.
Classificação: ★★★★★
Gostou deste texto? Ajude-nos a oferecer-lhe mais!
|