Intempol
editado por Octávio Aragão
uma crítica de Marcello Simão Branco
publicada em 05.10.2001
republicada em 27.06.2003
Viagens no Tempo com Sabor Tupiniquim
Um dos lançamentos mais interessantes da ficção científica brasileira acaba de aportar em nossa linha temporal: a antologia de contos sobre viagens no tempo Intempol. Ao contrário do que pode supor o leitor, esta coleção de contos não traz consagrados autores estrangeiros da ficção científica. Não! Ela foi inteiramente organizada, editada e escrita por brasileiros.
As viagens no tempo constituem um dos um dos filões mais explorados no universo da ficção científica. De H.G. Wells a Isaac Asimov; de Túnel do Tempo a De Volta para o Futuro, temos vários exemplos de histórias clássicas, divertidas e que exploraram em demasia os paradoxos e contradições temporais.
Mas ao contrário do que poderia nos parecer esta não é apenas mais uma obra que aborda o tema. Intempol, organizado e editado pelo escritor Octavio Aragão consegue inovar, tornar o manjado em novo, com histórias criativas, despojadas e sem-vergonhas. Parece-lhe estranho? Mas, caro leitor, o que torna este conjunto de histórias no mínimo curiosas é exatamente estas características, além do aspecto abrasileirado.
Tomando como ponto de inspiração a saga de contos Time Patrol (Os Guardiões do Tempo, editora Francisco Alves, 1984), do escritor americano Poul Anderson, Octavio Aragão concebeu uma polícia do tempo dirigida por brasileiros. Temos aqui, uma polícia bem à moda do nosso famigerado jeitinho, com tudo o que isso tem de virtude e defeito (muito mais defeitos, admitamos).
O ponta-pé inicial deu-se com a noveleta Eu Matei Paolo Rossi, de Aragão, publicada na antologia de contos de futebol e ficção científica Outras Copas, Outros Mundos (Ano-Luz, 1998). Lá, um torcedor brasileiro inconformado com a derrota do Brasil de Zico, Sócrates e Falcão para a Itália de Paolo Rossi no fatídico 5 de julho de 1982, em Sarriá, Espanha, resolve alterar a história que fomos obrigados a engolir.
A história marcou a estréia profissional do autor e teve tal repercussão que motivou outros autores a também escreverem histórias dentro do universo ficcional da Intempol criado por Aragão. Este livro que agora chega às livrarias é resultado de um trabalho de cerca de dois anos, levado adiante no ambiente virtual da internet, onde Aragão criou uma lista de discussão e também um site para desenvolver e divulgar as aventuras temporais tupiniquins.
O livro contém onze histórias que podem ser lidas alternadamente, mas o leitor terá um ganho substancial de qualidade se respeitar a seqüência linear. Ela não é gratuita. Os contos estão estruturados de maneira interdependente, onde personagens e fatos de uma história reaparecem em histórias adiante. Tudo muito bem amarrado, sem furos, o que garante, de certa forma, o mérito do livro se constituir num autêntico fix-up coletivo.
A primeira e a última história nos é apresentada por Lúcio Manfredi. Ele explora com sutileza metafísica o tradicional "paradoxo do avô", um dos subtemas mais conhecidos das viagens no tempo. A seguir, Aragão nos reapresenta a história responsável pelo boom da Intempol, Eu Matei Paolo Rossi. Depois, surge Jorge Nunes, estreando profissionalmente com uma história leve, despretenciosa e engraçada sobre um sujeito que altera as estruturas do tempo para provar que poderia fazer amor com qualquer mulher do mundo de qualquer época conhecida. E adivinhem o 'furacão' que ele escolhe... Nunes retorna adiante com uma história tocante, sobre uma mulher que não mede esforços para salvar o filho em um desastre vulcânico na ilha de Cracatoa, Pacífico Sul. Nem que para isso ela se transforme numa 'mulher que nunca existiu'. O conto se desenvolve num tom melancólico, fatalista, efetivo em suas imagens e na psicologia dos personagens.
Outro autor estreante é Osmarco Valladão e seu The long yesterday. Aqui a prosa é francamente depositária do estilo noir e melancólico de um escritor como Raymond Chandler. A história funciona mais como uma homenagem literária, como viagem no tempo ela não empolga.
O terceiro autor a estrear profissionalmente é Paulo Elache. Fã de ficção científica de muitos anos, ele procura integrar em sua história Questão de Ponto de Vista, as temáticas das viagens temporais, com as das linhas históricas alternativas. A tarefa, por si só, já se revelaria indigesta mesmo a um autor experiente e o resultado, apesar de interessante, soa confuso. É preciso uma ginástica mental para entender as reviravoltas e elocubrações do personagem. Talvez fosse preciso detalhar mais as situações, a fim de torná-las mais palatáveis.
Não satisfeito em reapresentar a história-chave da Intempol e organizar o livro, Aragão nos brinda com outra pérola intempoliana: Um Museu de Velhas Novidades. Aqui o autor está na plenitude do domínio do universo que criou, escrevendo com segurança e desenvoltura as intempéries e paradoxos bem afeitos ao funcionamento do trabalho cotidiano da Intempol e seus agentes: muita ação, reviravoltas, cenas violentas e personagens que servem de veículo à história, na velha tradição pulp da FC à la Golden Age. Esta história já vinha credenciada. Foi a segunda colocada no I Concurso Nautilus de Ficção Científica 1999, entre mais de 30 trabalhos concorrentes.
Carlos Orsi Martinho comparece com A Mortífera Maldição da Múmia. Basta dizer que esta é a melhor história do livro? Não, o leitor quer mais. Clima de Segunda Guerra Mundial, com Casablanca (isto mesmo, o filme), maldições enigmáticas do imenso deserto do Saara, com toques lovecraftianos, compõe o cenário de uma aventura alucinante, personagens carismáticos e muito bom humor. Martinho escreve com prazer e transmite isso ao leitor. Uma diversão só.
Diversão garantida também é uma palavra boa para definir a história mais longa do livro, a novela A Vingança da Ampulheta, de Fábio Fernandes. Mas é uma diversão nervosa, um pouco paranóica. A dedicatória do autor a Thomas Pynchon e Philip K. Dick, apenas fecha com coerência esta história estranha e muito ambiciosa. O texto tem, como direi, uma espécie de adrenalina que incomoda e ao mesmo tempo instiga o leitor. Cheia de citações literárias que, se num primeiro momento me pareceram um pouco pedantes, ao desenrolar do texto, fica claro que elas não só enriquecem a história, como ajudam a torná-la ainda mais rica e interessante. Aqui chegamos ao Nível Seis, o máximo da Intempol, em que um agente de um nível inferior que havia deixado de existir, indo parar na prisão dos homens que nunca existiram, tem uma nova chance de recuperar sua liberdade, partindo para uma missão impossível de ser compreendida. Quiçá cumprida. Um texto que explora muito bem os meandros da Intempol, a enriquecendo bastante, mas não só, podendo ser lida pelo leitor de FC em geral e mesmo por aquele não muito acostumado aos jargões próprios do gênero.
Outro autor que mostra muita desenvoltura e certa irreverência, é Gerson Lodi-Ribeiro com a noveleta São os Deuses Crononautas? Aqui ele procura expandir e fechar várias pontas propositadamente soltas ou insinuadas nas outras histórias. É uma história de especulação dos desígnios da própria Intempol, sua criação e desenvolvimento. E ele casa muito bem esta estrutura afeita ao livro com seu próprio universo temático, as histórias alternativas, recorrendo a exemplos e situações de suas próprias histórias situadas em outros trabalhos ficcionais.
Aragão se inspirou claramente na Time Patrol de Poul Anderson, como disse. Mas fez mais do que adaptá-la ao estilo brasileiro de contar as histórias. Fazendo uma comparação um pouco mais genérica, há lapsos estruturais da própria história clássica de Isaac Asimov, Fim da Eternidade, onde os Eternos, são os responsáveis pelo controle da tessitura do espaço-tempo, corrigindo, equilibrando as incongruências, os paradoxos, na tentativa de reestabelecer a ordem na longa e contraditória história humana. Até que tudo mude e decisões radicais tenham de ser tomadas na tentativa de se manter os Séculos Interditos contra a inevitável finitude premente, provocada pela motivação individual humana, como invariavelmente acontece. Nos objetivos da Intempol outra coisa não há do que manter o controle sobre os vários fluxos espaço-temporais existentes e futuros. Só que não à maneira de Asimov, nem de Anderson, mas com um jogo-de-cintura bem próximo do que conhecemos.
Se podemos enxergar uma estrutura asimoviana na composição do universo intempoliano, mas não só, a antologia Intempol é importante também por se inserir na boa tradição da ficção científica brasileira de publicar antologias temáticas.
Já tivemos uma sobre o Natal (Enquanto Houver Natal, editora GRD, 1989); Dinossauros (Dinossauria Tropicália, GRD, 1993); Futebol (o já citado Outras Copas, Outros Mundos), Ufos e contatos extraterrestres (Estranhos Contatos, Caioá, 1999), Brasil 500 anos (Phantastica Brasiliana, Ano-Luz, 2000). Cada uma delas por sua especificidade e matiz brasileiro, traz uma sensível e efetiva contribuição para a identidade da ficção científica feita no Brasil e para uma visão diferenciada de temas tão caros tanto à tradição da ficção científica, quando a temas nacionais. A antologia Intempol se sai bem em ambas as categorias.
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