R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

A Guerra das Salamandras

por Karel Capek

uma crítica de Marcello Simão Branco

publicada em 06.03.2004

Escrito em 1936, o romance A Guerra das Salamandras (Valka s Mloky, no original tcheco) tornou-se ao longo dos anos um clássico. Não só de uma literatura fantástica ou de ficção científica, mas de toda a literatura. Pode ser citado facilmente como um exemplo cabal de que sim, a chamada literatura de gênero, já produziu algumas obras de cunho maiúsculo em termos de universalidade de idéias e qualidade artística.
O tcheco Karel Capek – também o responsável pela igualmente clássica peça R.U.R, de onde saiu a palavra robô –, vislumbrou e intuiu como poucos artistas em sua época, os tempos sombrios que se avizinhavam na Europa e, por extensão, em todo o mundo. Regimes totalitários, perseguições, torturas, assassinatos, guerras, genocídio... Uma história sobejamente conhecida por todos.
A Guerra das Salamandras é uma história contada num estilo narrativo quase que semi-documental e histórico, não se centrando em um grupo de personagens. Eles existem, mas passam pela história sem grandes aprofundamentos. Mas embora sendo uma espécie de veículo do enredo maior, são mais do que meros personagens bidimensionais. Eles têm alguma alma e complexidade, como nos casos do Capitão Van Toch e no mordomo Povondra. Especialmente este último, simultaneamente um personagem simplório e muito rico, na maneira como percebe o fim iminente do mundo em que aprendeu a viver.
Do ponto de vista da forma a narrativa é singular, ao menos no panorama da ficção científica. O autor se vale de recursos pouco comuns a uma literatura convencional e considerada mais artística. Há cartas, notas de rodapé, trechos de línguas difíceis de serem compreendidas, como o theco, o alemão e o japonês, entre outras. Mas tudo isto serve ao propósito do que o autor está tentando comunicar e, por isso, só torna a leitura curiosa e instigante.
São descobertas as salamandras numa obscura ilha do Pacífico. Mas não as salamandras já conhecidas. Estas são inteligentes, manipulam instrumentos, elaboram complexos rituais sexuais e aprendem facilmente a linguagem humana. Daí por diante, Capek trata de mostrar o que as civilizações humanas fizeram – e tratam de continuar fazendo – quando encontram um novo povo desconhecido e sem condições de se defender. São escravizados. E com esta gigantesca força de trabalho revolucionam toda economia industrial do planeta.
Com a crescente participação salamandra aos costumes da civilização, vêm a reivindicação de direitos, de respeito, de libertação da exploração. As salamandras se humanizam, integrando-se à cultura humana. Mas sempre numa condição secundária e inferiorizada.
O livro mostra de forma impressionante este processo e como vai mudando a maneira de pensar dos homens. E das próprias salamandras. De forma incrivelmente verossímil e habilidosa, Capek narra a virada aparentemente impossível: de como os seres humanos passam de senhores a servidores dos seus antigos escravos. As salamandras dominam os mares, mas vivem nos litorais. Com sua expansão populacional e econômica, precisam de mais costas litorâneas. E assim passam a explodir pedaços dos continentes – e por extensão de países – em busca de mais costas para expandir seu meio de vida.
Capek disse que a idéia de escrever este épico provocante lhe veio quando pensou que talvez fosse possível que a evolução biológica do planeta tivesse tido outra trajetória. Uma na qual seria possível, à parte a evolução do Homo sapiens, que uma outra espécie animal também adquirisse uma inteligência próxima à humana. Se o livro ficasse apenas com esta leitura já seria dos mais interessantes. Menos até pelo tema em si, mas da maneira como o autor theco elabora e constrói a trama.
Mas A Guerra das Salamandras vai além. Sua força maior reside nas especulações políticas e ideológicas que procura refletir. Especialmente pelo momento delicado e incerto que o mundo vivia àquela época, já com Hitler barbarizando no poder. Curioso e significativo é como o autor retrata alemães, ingleses e franceses no livro. Com extrema perspicácia com relação ao imperialismo 'nato' do povo germânico. Como um povo ao mesmo tempo tão sensível e artístico pode ser também tão monstruoso e bestial? Já os ingleses e franceses são expostos, de uma maneira geral, como egoístas, ambiciosos e soberbos demais para perceberem quando o grande perigo ronda suas próprias vizinhanças. Pois a História dos anos à frente o que nos mostrou?
Em todo caso, é sempre possível argumentar com propriedade que estas visões não sejam mais do que meras caricaturas, nos dias de hoje. Mas são interessantes em mostrar como um intelectual de um país menor, como a antiga Tchecoslováquia, se referia aos povos de maior poderio econômico e político da época. E das conseqüências que estas características iriam causar a todo o continente europeu durante a Segunda Guerra Mundial.
O livro se presta a várias interpretações e mesmo os judeus podem ser as salamandras. Tudo é uma questão de seguir uma determinada linha de análise, pois a obra permite estas várias e pertinentes leituras.
E o capítulo final é tão estranho quanto perturbador. Mais que um exercício de metalinguagem, o autor faz uma reflexão interna do que está por vir. Em vida ele não descobriu, pois morreu em 1938, pouco antes da guerra estourar. Mas, com sua perspicácia, mostrou aos leitores da época o que estava por vir. Se não em um mundo com salamandras, outro no qual os homens não conseguem conviver.
Visto em retrospectiva A Guerra das Salamandras é um livro importante, pelo que intuiu, pela forma ousada e forte com que foi concebido e pela universalidade de sua análise da condição humana. Seja às portas do nazismo, seja no mundo globalizado deste início de século XXI, seja também – e não menos importante – da maneira como tratamos as outras formas de vida deste planeta.

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A Guerra das Salamandras

por Karel Capek

Editora Brasiliense (Brasil)

tradução de Rogério Silveira Muoio

(1988)

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