Cryptonomicon
por Neal Stephenson
uma crítica de Artur Coelho
publicada em 20.10.2006
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Algoritmos Secretos
A criptografia é um desporto radical para mentes altamente inteligentes. Os jogos lógico-matemáticos de cifras e códigos são acessíveis apenas aos iniciados nas intricacias mais profundas do cálculo matemático. O carácter obscuro da criptografia é exacerbado pelo secretismo que lhe é inerente. E o objectivo final da criptografia, é bom não esquecer, é o de cifrar mensagens, transformando mensagens legíveis numa algaraviada totalmente incompreensível excepto para quem detém os códigos que permitem descodificar a algaraviada. A utilidade da criptografia é a de esconder, ocultar, e permitir que as comunicações sejam feitas de forma anónima e não detectada.
O uso de códigos já tem uma longa história, tão longa como a história dos homens que desejam agir em segredo, mas há um padrão que se mantém: criar, e desvendar códigos não é tarefa fácil, especialmente se as formas mais elegantes e avançadas desse campo de conhecimento inquietante que é a matemática tiverem alguma coisa a ver com a mensagem cifrada.
Durante séculos a criptografia foi de utilização exclusiva por grupos isolados e governos com as suas necessidades económicas e militares. Tratavam-se dos que tinham necessidade de cifras — o general que quer informar os seus comandantes dos movimentos das suas tropas sem que os seus inimigos deles suspeitem, os governos que necessitam de enviar mensagens aos seus embaixadores, protegendo segredos de estado ou investigando segredos alheios, grupos obscuros com objectivos velados que se movem nas trevas da sociedade. Nos tempos recentes, a criptografia democratizou-se, graças a uma sociedade cada vez mais informatizada que depende de códigos e algoritmos para assegurar todas as operações que colocam este mundo em movimento. Banalizada em códigos de multibanco e protocolos informáticos, nem por isso a criptografia deixa de ter uma aura de mistério, de palavras ocultas que escondem fortunas ou segredos das mais altas esferas.
Mas a criptografia não é acessível a todos. Parte da sua mística reside precisamente nos seus códigos arcanos, legíveis apenas por aqueles que estão por dentro do segredos... e legíveis por uma elite rara, capaz de decifrar códigos que não conhece.
Neal Stephenson já tem uma apreciável carreira como autor de ficção científica. Autor de Snow Crash, romance satírico que se tornou uma das mais importantes obras de fc cyberpunk (pensem em Hiro Protagonist como nome do personagem principal e percebem porque é que o livro é satírico), foi capaz de abordar a rede de construção de cabos submarinos e os empreendimentos tecnológicos num mundo cada vez mais pequeno, em que as maravilhas naturais das praias asiáticas estão a um clique ou a um bilhete de avião de distância dos velhos centros europeus, no Mother Earth, Mother Board, artigo da Wired que aborda o desenvolvimento tecnológico como uma grande aventura de viagens em destinos exóticos. Capaz de ver o lado excitante dos recantos mais obscuros da tecnologia, só Stephenson conseguiria transformar algo tão àrido como a criptografia numa obra intrigante e excitante.
Histórias às voltas com códigos secretos é do que mais se encontra nos escaparates das livrarias, e até em alguns cinemas. Os segredos cifrados estão na moda, graças a divertidas inspirações literárias nas grandes figuras do renascimento envolvidas em esotéricas conspirações secretas. Mas na maioria dessas obras o mundo da criptografia é apenas um adereço em histórias de conspirações secretas. No Cryptonomicon de Neal Stephenson, a criptografia é o elemento essencial sem a qual tudo o resto pouco faria sentido.
Cryptonomicon é um romance global que faz do planeta a sua aldeia, tão à vontade nas ilhas do Pacífico sul como nas costas da Suécia, na Nova Inglaterra, em Xangai ou no meio do Atlântico. É também um romance que atravessa épocas, dividindo-se entre o mundo de guerra global da segunda grande guerra e o mundo da economia global dos tempos de hoje. Cryptonomicon acompanha as aventuras e desventuras de um heterogéneo grupo de personagens que se cruza entre si e os seus descendentes num teatro global onde as subtilezas criptográficas assumem uma importância vital para a estrutura da sociedade.
Lawrence Waterhouse é um matemático introspectivo com uma capacidade inata de compreender a mecânica dos algoritmos. Altamente inteligente, Waterhouse é o tipo de génio que resolve os problemas do mundo dentro da sua cabeça e depois não está para se dar ao trabalho de aplicar na realidade os modelos mentais que circulam na sua mente acelarada. É a diferença entre descrever ao pormenor o funcionamento de um mecanismo e o construir o mecanismo. Perfeitamente capaz do primeiro, Waterhouse cedo se desinteressa das aplicações prácticas, deixando a sua mente perder-se enquanto decifra o próximo problema que lhe desperta o interesse.
Colega e amigo de Alan Turing em Princenton, Waterhouse fascina-se com as pesquisas de Turing no campo das máquinas analíticas, descrevendo em animadas discussões entre si os primórdios dos primeiros computadores. Turing apresenta-o ao seu amante, Rudy Hackleberger, matemático leibniziano que irá desempenhar um papel fundamental no esforço de guerra criptográfica nazi. O ataque japonês a Pearl Harbour apanha Waterhouse desprevenido como membro da banda de um navio de guerra estacionado no Havai. Ao alistar-se na marinha, Waterhouse passou o exame de admissão de matemática básica a resolver uma arcana e intricada questão relacionada com as equações de Navier-Stokes (que descrevem o movimento de fluidos) que lhe surgiu na mente ao ler a primeira pergunta do questionário, sobre quanto tempo demoraria um barco a ir do ponto A ao ponto B. A marinha considerou-o incapaz de qualquer outro serviço que não o de músico nas bandas navais, mas após Pearl Harbour destaca-o para os serviços secretos, onde Waterhouse revela a sua capacidade inata para descodificar sistemas criptográficos. Torna-se assim um dos mais brilhantes e respeitados criptógrafos dos serviços secretos, contribuindo com imensos novos conhecimentos para o cryptonomicon, um compêndio disperso dos saberes critpográficos e das técnicas de cifração e decifração.
Waterhouse é destacado para Inglaterra, onde presta serviço no famoso Bletchley Park, o centro militar onde eram descodificadas todas as mensagens inimigas. Em Bletchley Park, Waterhouse reúne-se com Turing, que ajudara no esforço de decifrar o inquebrável código Enigma, e inicia um trabalho não de decifração mas de desinformação. A importância dos códigos Enigma era vital: todas as mensagens do alto comando nazi eram cifradas nesse código, supostamente inviolável — e a história da captura das máquinas Enigma e da decifração dos seus códigos é um dos momentos mais brilhantes da Segunda Guerra Mundial. Mas para que a decifração das mensagens tivesse validade era importante que os alemães não se apercebessem de que os seus códigos haviam sido quebrados.
Na realidade histórica, este esforço de desinformação resultou no bombardeamento de Coventry, de que Churchill havia tido conhecimento graças às mensagens secretas decifradas, mas não dera a ordem de evacuação da cidade para que os alemães não percebessem que os seus códigos haviam sido descobertos. Na ficção informada de Cryptonomicon, Waterhouse participa na criação de elaborados esquemas de desinformação, levados a cabo por um destacamento especial de Marines americanos e de SAS britânicos, que plantam provas fictícias por detrás das linhas inimigas para que os alemães não desconfiem da estranha precisão aliada em encontrar submarinos no Atlântico Norte ou em afundar comboios navais no mediterrâneo. Os sucessos aliados deviam-se ao quebrar dos códigos das mensagens, que lhes permitiam saber exactamente onde atacar, e o trabalho de Waterhouse e do destacamento 2702 era o de criar provas do contrário, através de operações especiais ou do estabelecimento de estações de triangulamento radiofónico fictícias. O destacamento 2702 era anteriormente o destacamento 2701, mas sendo este número um número primo muito específico Waterhouse pediu a alteração do nome, pois o simples 2701 poderia fornecer uma pista criptográfica que sinalizaria aos alemães a decifração dos seus códigos.
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