R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Conan — A Rainha da Costa Negra

por Robert E. Howard

uma crítica de Artur Coelho

publicada em 17.09.2006

Confesso que foi com alguma relutância que peguei nesta edição de contos de Robert E. Howard editada pela Saída de Emergência. Trata-se de um livro de contos de Conan, o bárbaro, personagem batida e estereotipada com múltiplas encarnações na cultura popular. Falar de Conan é relembrar institivamente toneladas de pranchas de banda desenhada onde o bárbaro vive e revive violentas e repetitivas aventuras numa terra antediluviana; e, um pouco mais assustador, é relembrar um jovem Arnold Schwarznegger a correr de tanga e espada em punho enquanto combate serpentes gigantes com voz de Darth Vader (James Earl Jones, que deu voz a Vader, desempenhou no malfadado filme o papel de feiticeiro malvado que Conan tem de aniquilar). Ou seja, a boa recordação de Conan são as ilustrações de Barry Windsor-Smith numa das fases dos comics, com um traço pré-rafaelita que transformava as vinhetas em obras fascinantes. Tudo o resto não parece passar de fantasias menores habitadas por exóticas mulheres semi-desnudas, feiticeiros tenebrosos, deuses desdenhosos e bárbaros fortes e musculados, descritos com uma precisão homo-erótica.
Não se pode negar que Conan é uma personagem que já faz parte do inconsciente colectivo da cultura de entretenimento. Faz por isso todo o sentido ler, ou reler, os textos originais que originaram o culto da personagem. Para mais, a minha leitura anterior de Salomão Kane revelou uma obra mais complexa, com valor, do que à partida suspeitaria num clássico escritor pulp como Robert E. Howard. Ler os contos originais de Conan é um mergulho na imaginação exótica do escritor. Conan é pura ficção escapista dos saudosos primórdios da generalização deste tipo de ficção, e lê-se com o prazer de quem saboreia um bom petisco. Pode não encher o estômago, como Guerra e Paz ou qualquer outro dos grandes clássicos, mas é uma leitura de profundidades insuspeitas que ultrapassa a linearidade e a superficialidade do que habitualmente se publicava (e publica) nos pulps — uma característica que Robert E. Howard tem em comum com H. P. Lovecraft.
As histórias de Conan contam-nos as aventuras de um bárbaro possante e honesto nas paisagens exóticas da era Hiboriana, uma era há muito desaparecida que se estendeu desde o afundamento da Atlântida até aos primórdios da história humana — pelo menos de acordo com a mitografia esparsamente estabelecida pelo autor. Conan é um cimério, homem da raça mais endurecida e selvagem do norte, que vive aventuras empolgantes nas exóticas terras e cidades da era hiboriana, nas suas diversas vocações de ladrão, mercenário, aventureiro, líder militar, pirata e rei. Possante e de espada em punho, Conan impõe a sua vontade aos espíritos distorcidos de reis corruptos, sacerdotes tenebrosos e divindades malévolas. Apesar de selvagem e amoral, Conan acaba sempre por estar do lado do bem, embora não seja uma bondade tranquila — antes, é mais a bondade no fio de uma pesada espada empunhada por um braço musculado. Terras fantásticas, cidades exóticas, mulheres sensuais e feiticeiros malvados — é este o mundo simplista que habita o imaginário das histórias de Conan.
Simplista, embora pouco simples. Apesar de serem contos de moralidade óbvia — o bem contra o mal, e o bem vence sempre, apesar das vicissitudes do mal, há pormenores que escapam ao simplismo. Provavelmente é por isto que Conan continua a ser lido e a chamar a atenção, quando outras personagens semelhantes com a mesma tipologia caíram no esquecimento. Um dos pormenores que chama a atenção prende-se com a selvagaria de Conan — Conan é um selvagem, e age como tal. O bem e o mal, na personagem, é o bem e o mal de um mundo naturalmente violento — como um lobo que é obrigado a devorar um coelho fofo para sobreviver. Parece mal, mas não o é. São simplesmente as leis implacáveis da natureza em acção, no eterno ciclo de vida e morte. Por outro lado, a verdadeira maldade está presente no mundo civilizado. Se Conan é selvagem, e por isso de moralidade duvidosa, os seus contactos com a civilização revelam um mundo onde a maldade é ocultada sob a capa de palavras melífulas e de luxos ostensiosos. O mundo natural pode ser amoral, mas o mundo civilizado é imoral, parece ser uma das mensagens de Robert E. Howard. Com a civilização vem a sede de poder e a ambição desmedida.
Outro pormenor curioso no mundo imaginário de Conan prende-se com os deuses da era hiboriana. Os deuses gerados pela imaginação de Howard não são deuses benévolos, que ajudam a humanidade. Crom, o deus a que Conan dirige as suas preces, é uma divindade indiferente que se interferir na vida dos seus crentes é para lhes trazer a destruição. E os outros deuses pouco melhores são. São antes como demónios, que brincam com as vidas humanas e escondem trevas profundas para lá dos seus aspectos assustadores. O clero que serve estes deuses é um clero cego e louco, sedento de poder e ambição, que não hesita em usar os poderes dos seus deuses para expandir o seu domínio temporal, pilhando e escravizando a seu bel-prazer. Conhecendo mal a biografia e o pensamento de Robert E. Howard, não me posso atrever a dizer que isto revela desdém e desconfiança pelo conceito de religião.
O aspecto de uma moral primitiva, selvagem mas justa, que se impõe às moralidades dúbias e às ambições veladas de uma civilização que corrompe já era legível nas aventuras de Salomão Kane. Conan — A Rainha da Costa Negra é um saudável e refrescante mergulho na fonte das histórias de uma personagem batida, que revela alguns toques insuspeitos que ultrapassam os estreitos limites do género e revelam porque é que a personagem se tornou parte integrante do imaginário colectivo.

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Conan — A Rainha da Costa Negra

por Robert E. Howard

Saída de Emergência

tradução de Luís Filipe Sequeira, Rogério Ribeiro, Luís Filipe Silva, Jorge Candeias, Sérgio Gonçalves, António Vilaça e Luís Rodrigues

2005

Críticas de Artur Coelho