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Solaris: O livro e os filmes

por Eduardo Torres

publicado em 16.07.2006

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Muitos diálogos do filme reproduzem os do livro, mas em diferentes personagens, o que também é instigante.
Em termos de efeitos especiais, no entanto, o filme foi bem mais fraco que 2001, que se propunha a 'responder'. Tem uma cena de falta de gravidade na estação muito bonita, e que serviu como contraponto entre duas fases importantes no relacionamento dos cientistas com os 'visitantes', mas que tinha erros primários, como velas com chamas verticais e os cabelos de Harey caindo para baixo sob a ação de seu peso.
Tarkovsky morreu de câncer em Paris em 1986. Embora Solaris tenha sido sua obra mais famosa, o cineasta sempre dizia que não era sua favorita.
Tanto Solaris, o livro, como Solaris, o filme de Tarkovsky, nos fazem pensar nos abismos que temos dentro de nós mesmos, ainda mais perturbadores que as profundezas de Solaris, e os dois têm momentos sublimes de fascínio, embora não focados nas mesmas seqüências, o que, como disse, enriqueceu as duas obras.
Solaris de Soderbergh situa a narrativa numa estação de propriedade de uma empresa privada (numa polêmica 'atualização globalizada' da exploração espacial), sem envolver o espectador na longa história científica da Solarística. E muda o frio e cínico Sartorius para uma física negra mais sanguínea chamada Gordon, mas que mantém em linhas gerais a personalidade original do protagonista. Snaut agora é Snow e a Harey do livro em polonês (que virou Hari em russo no primeiro filme) agora é Rheya.
O roteiro de Soderbergh privilegia a história de Kris (agora Chris), Rheya e Gibarian antes de sua viagem à estação, numa recriação ousada do texto original de Lem, mas que funciona muito bem. Nessas seqüências em flash back, o diretor optou por uma brilhante iluminação amarela que contrastava com os tons azuis metálicos e escuros das cenas na Estação Solaris. A música do filme (especialmente composta, diferente da opção de Tarkowsky) impressiona e serve também como agente dramático do filme. Nessa versão, a angústia e desconcerto com os 'visitantes' são centrados, muito mais que nas outras duas versões, nas relações emocionais e amorosas entre Chris e Rheya. Mas creio que essas opções do roteiro não fizeram injustiça à essência da história e às idéias originais de Lem, apenas as mostraram por novo ângulo, igualmente rico.
É interessante observar que, apesar dos comentários cáusticos da crítica na época da produção de que seria uma obra muito mais comercial que artística, a refilmagem de Soderbergh foi muito mais baseada no livro de Lem que no filme de Tarkovsky, com até mais diálogos do romance original reproduzidos 'verbatim' que na primeira versão cinematográfica (e, como nela, também com interessantes inversões das falas entre os personagens).
Em termos de ritmo, o filme de Soderbergh é bem diferente do livro e do primeiro filme, com as seqüências de ação e diálogos se sucedendo praticamente sem nenhuma pausa meditativa, exceto os curtos, mas belos planos gerais de Solaris criados por computação gráfica, que servem como marcadores da entrada de cada nova fase da história.
O aspecto 'hard' dos dois filmes é, propositalmente, menos cuidado que no livro, mas na versão de Soderbergh é relegado a plano mais que secundário, exceto nas cápsulas de ejeção dos 'visitantes', que no filme de 2002 parecem mais verossímeis que no livro e na película de 1972, onde temos foguetes com chamas lançados do interior da estação. (Aliás, essas cenas de 'divórcio' estão presentes nas três obras, e são tão perturbadoras para Kris/Chris quanto para o leitor/espectador). Em termos de explicação sobre a constituição física dos 'visitantes' e do seu aniquilamento, foi o mais fraco dos três.
No entanto, a rica ousadia da versão de 2002 prossegue quando o espectador descobre que o Snow que conhecemos não é o 'original', mas também uma criação de Solaris. Esse 'passo além' não foi pensado (ou pelo menos mostrado) por Lem, mas parece uma conseqüência natural, abrindo novos e angustiantes questionamentos sobre a natureza humana, dentro do espírito da história original, e até ampliando seu alcance.
O final do filme de Soderbergh também inova criativamente em relação a Lem e a Tarkovsky. Nessa versão Chris reencontra Rheya de modo mais definitivo (de novo, sugestivamente, num ambiente amarelo brilhante), ao permanecer na estação em sua queda em direção a Solaris, atraída inexoravelmente pelo oceano. Fica uma possível leitura de continuidade da 'experiência' em um nível mais profundo, como no primeiro filme, ou um presente de Solaris, como insinuado no romance sobre o verdadeiro objetivo dos 'visitantes'. Soderbergh mostra ainda uma tocante cena do 'visitante' menino, filho de Gibarian, estendendo o braço para um Chris jogado ao chão, confuso com o colapso da estação, criando uma bela alegoria do 'Contato' longamente sonhado pelos solaristas de Lem.
E, como uma possível interpretação ainda mais rica, creio que Soderbergh deixa em aberto para o espectador a possibilidade de Chris ter efetivamente embarcado na 'Athena' e deixado com Gordon a estação a caminho da Terra (pois as etapas de lançamento confirmadas por Gordon com Chris a bordo pareciam ser irreversíveis e impeditivas de um abandono repentino da nave).
Nesse caso, o Chris que vimos deixar a ala de embarque não seria o original, mas uma cópia criada por Solaris (interpretação reforçada pela seqüência de volta à Terra de Chris mostrada logo após as confirmações das etapas de lançamento anunciadas por Gordon).
Assim, a cena final de Chris e Rheya seria inteiramente uma recriação de Solaris, aprofundando o 'Contato' com a observação do relacionamento íntimo de seres criados exclusivamente de memórias humanas, mas que seriam tão humanos quanto os originais. Talvez até mais, pois, nas palavras de Snaut no romance, apenas 2% de nossa atividade mental é consciente. Se Solaris pode ler 100% de nossa atividade mental, ele nos conhece melhor que nós mesmos.
Creio que, se esteticamente o Solaris de Tarkovisky pode ser considerado superior ao de Soderbergh, este último foi no mínimo do mesmo nível em termos de ficção científica, ousadia criativa e respeito ao cerne do romance.
Os leitores de Solaris podem se beneficiar dos dois para ampliar o alcance e a reflexão propostos no livro, e ainda manter o exclusivo prazer de imaginar livremente em suas mentes o poético trecho, não reproduzido em qualquer dos filmes, em que Lem descreve o primeiro contato direto de Kris com o oceano vivo, quando, ao estender seu braço, uma das ondas de Solaris hesita, recua, e depois envolve sua mão enluvada, sem no entanto tocá-la.
Solaris, o livro e os filmes, representam um tour de force imaginativo com o que há de melhor na ficção científica: Têm a capacidade de nos fazer pensar com novos paradigmas num mundo possível, mas inteiramente diferente do nosso. E, dessa posição vantajosa, nos permitir olhar mais penetrantemente para nós mesmos.

Fichas Ténicas:

O livro:

Primeira edição em português:
 
Solaris, Stanislaw Lem, tradução (do inglês) de José Sanz, Coleção Asteróide, Editora Sabiá, Rio de Janeiro, GB, dezembro de 1971
 
Primeira edição em inglês:
 
Solaris, Stanislaw Lem, tradução (do francês) de Joanna Kilmartin e Steve Cox, Editora Faber, Londres, junho de 1970
 
Primeira edição em polonês:
 
Solaris, Stanislaw Lem, Editora Wydawnictwo Mon, Varsóvia, 1961

O filme:

Solaris (1972)
 
Direção: Andrei Tarkovsky
Produção: Viacheslav Tarasov
Roteiro: Fridick Gorenshtein e Andrei Tarkovsky
Elenco:
Donatas Banionis (Kelvin)
Natalya Bondarchuck (Hari)
Jüri Järvet (Snaut)
Vladislav Dvorzhetsky (Berton)
Sos Sargsian (Gibarian)
Nikolai Grinko (pai de Kelvin)

A refilmagem:

Solaris (2002)
 
Direção: Steven Soderbergh
Produção: James Cameron, Jon Landau, Rae Sanchini, Charles Bender, Gregory Jacobs e Michael Polaire
Roteiro: Steven Soderbergh
Elenco:
George Clooney (Kelvin)
Natascha McElhone (Rheya)
Viola Davis (Gordon)
Jeremy Davies (Snow)
Ulrich Tukur (Gibarian)

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