R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Ficção Científica Boliviana

por Miguel Esquirol

tradução de Jorge Candeias

artigo publicado em 15.05.2005

O título poderia parecer uma contradição em si mesmo. Como pode haver ficção científica num país onde quase não há ciência? Mas na Bolívia, tudo predispõe para aceitar este género literário como algo nosso: a mistura de culturas pré-colombianas com computadores de última geração, monólitos ancestrais e Boeings 747 que levam os bolivianos até países que, esses sim, parecem futuristas, cibercafés ao lado de qhatus de batatas (vendas de batatas, em geral colocadas no chão, sobre uma esteira), centros de alta tecnologia situados no meio do Altiplano. As contradições que se podem encontrar dentro das fronteiras do país permitem-nos acreditar que qualquer coisa é possível e a ficção científica não é mais do que isso.
Mas apesar de termos um caldo de cultura apropriado para uma ficção científica muito boliviana, muito nossa, os livros que se escreveram sobre o tema são muito poucos e quase desconhecidos, e é por isso que antes de nos propormos começar a escrever com novas palavras o que pode acontecer à Bolívia é bom ver o que outros escritores produziram.
Dois dos romances mais antigos de ficção científica que encontro na biblioteca Portales (e na sua excelente colecção de literatura boliviana) são: Utopía 2487 de Werner Pless, um alemão radicado na Bolívia e que em finais dos anos quarenta já escrevia sobre o futuro, e Víctima de los siglos, de 1943, escrito por Alvaro Montenegro.
Escreveram-se ambos os romances, os primeiros do seu género na Bolívia, num momento em que os Estados Unidos viviam a sua idade do ouro graças à revista Amazing Stories. Na Bolívia, estes romances não passavam de experiências. Mas é curioso ver como os dois romances, apesar de contarem histórias diferentes, se apoiam no mesmo método para ter acesso ao "futuro". Um romance de ficção científica fala normalmente de uma terra distante com alta tecnologia e uma cultura muito diferente da actual, mas estes dois escritores tiveram de encontrar uma desculpa para ter acesso a este mundo futuro, como se não se pudessem situar directamente nele para contar a história.
Em Utopia 2487 o protagonista é adormecido para despertar cerca de 500 anos no futuro e descobrir que tudo o que conhecia tinha mudado. Alvaro Montenegro em Victima de los siglos utiliza a desculpa de uma bomba atómica (quando este tema era de furiosa actualidade) e congela o protagonista graças a um estranho gás, fazendo-o despertar 5000 anos no futuro. Aí, encontrará uma cidade futurista com poderes de telepatia e outras surpresas. Ambos os viajantes no tempo, como já H. G. Wells tinha feito, dedicam-se a entender este mundo futuro e o texto utiliza a narração como metáfora do tempo presente.
Antes dos anos noventa, apareceram mais alguns nomes, como Harry Marcus (outro alemão) com o livro El abismo de Estrellas ou Roberto Leiton e até mesmo uma mulher: Marcela Gutierrez. Estes autores estão quase inadmissivelmente esquecidos. A excelente revista de contos Correveidile resgata estes e outros nomes (número 20-8) trazendo ao presente alguns destes livros quase esquecidos em poeirentas bibliotecas pessoais.
Temos de chegar às vésperas do novo século para encontrar mais exemplos. Pareceria que, na Bolívia, a ficção científica se alimenta de antologias e não de livros individuais. Já falámos da compilação de contos feita pela Correveidile, e, coincidindo com o ano 2000, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) convoca um concurso de conto como parte dos seus Relatórios de Desenvolvimento Humano. Santillana publica este livro, dando a conhecer uma mostra de 10 contos de jovens entre os 17 e os 22 anos de idade. De todos os contos publicados, muito poucos atingem a qualidade necessária para ser bons representantes da ficção científica boliviana. Greg Mercado, com o seu conto El KOAN-testador, consegue um esforço notável com um conto herdeiro talvez de O jogo de Ender, embora mais metafísico. Nayra Corzón, no segundo lugar do concurso, apresenta um conto mais autêntico que mistura a cidade do Alto com personagens que brincam e lutam entre detritos nucleares e basuras del siglo pasado (lixos do século passado).
Um ano antes tinha-se convocado o concurso Ficção Científica da Agência Suíça para o Desenvolvimento e a Cooperação (COSUDE) com uma publicação de ficção científica em forma de jornal futurista. Nem a publicação do PNUD nem esta última, ambas tornadas possíveis pelo jornalista Rafael Archondo, tiveram, tristemente, maior transcendência do que aquela obtida no momento da publicação. Podem ler-se os dois contos vencedores do PNUD aqui.
Ao começar o século XXI, aparecem alguns livros de ficção científica de maior qualidade e com um fundamento mais claro. Em 2001 publicou-se El Viaje, do escritor Rodrigo Antezana. Este romance publicado pela editora Nuevo Milenio mostra, agora sim, um momento futuro (se não possível, pelo menos plausível) com estruturas sociais e culturais próprias. O livro mostra um mundo com estética Mad Max e o encontro de dois povos totalmente opostos, os "humanos", por falta de um termo mais adequado, e os seres mecanizados, ou Vanders. Este mundo futuro já não é uma "Metáfora", como acontecia com publicações anteriores, mas mostra, simplesmente, a aventura dos personagens. E embora a narração evoque todas as influências do escritor, a história agarra o leitor e é capaz de dirigi-lo até à conclusão, entre enredado e livre das malhas da narração. Abundante em descrições e explicações, a história funciona com a sua própria coerência e capacidade de entretenimento.
Em 2003 foi editado um romance que, embora não seja propriamente ficção científica (e o seu autor poderia zangar-se se o encerrarmos neste círculo), tem elementos inconfundíveis do género. El delirio de Turing (Alfaguara, 2003) de Edmundo Paz Soldán não fala de mundos futuros nem de tecnologias assombrosas, mas conta a história de um criptoanalista, de um hacker saído dos bairros baixos de Quillacollo, de um jogo de realidade virtual em que todos os cidadãos se podem encontrar e interactuar, e também conta a guerra da electricidade (semelhante à guerra da água) e fala das heranças de medo e paranóia das ditaduras militares. A narração tem muito de ciberpunk, de futurismo dentro do momento actual, mas também muito de análise da realidade. Paz Soldán, mais autêntico do que em qualquer dos seus outros livros, recria esta cidade "Río Fugitivo" cada vez mais distante da Cochabamba real mas por isso mesmo mais autêntica.
No ano seguinte publica-se De cuando en cuando Saturnina (Ed. Mama Huaco, 2004), da antropóloga inglesa Alison Spedding, que vive no nosso país há 15 anos. Herdeira do ciberpunk, Alison Spedding apresenta uma Bolívia do futuro: Estamos no ano de 2086. Uma revolução indigenista, arcaicista, racista e sanguinária impôs um novo regime e fundou um novo país, Qullasuyu Marka, também conhecido como La Zona Liberada. A "Cortina de Ferro nos Andes" não tem televisões, nem jornais, nem editoras. Os q'aras não foram expulsos, simplesmente fugiram depois da Guerra de Libertação de 2022. Com este romance foi finalmente escrita uma história com novidades, que apresenta novas teorias e que aproveita a cultura e a realidade da Bolívia para ficcionar um futuro talvez não muito utópico, mas baseado na realidade, em tendências e ideias que estão presentes. A história não é só a aventura de la satuka, mas serve-se das características da ficção científica para imaginar e analisar o que aconteceria se o povo Aymará fosse dominante, ou se os camponeses decidissem entrar verdadeiramente em guerra.
O último romance, que também foi publicado em 2004, é El Huésped, de Gary Daher. Embora seja difícil categorizar este romance dentro da ficção científica por não ter os elementos típicos do género (sociedades futuras, alta tecnologia), está claramente dentro deste território ao contar-nos uma história de um mundo com regras diferentes das que conhecemos, com uma cultura e desenvolvimento social próprio desse mundo e com a estranheza do estrangeiro que tem de se adaptar ao que desconhece. O romance conta a chegada de Rodriguez a um "hotel". A secção mil duzentos e onze, a que o protagonista chega, é um edifício-colmeia, parte de uma série de secções semelhantes, como se se tratasse de um sistema de reencarnação. 1984, de Orwell, está presente neste mundo vigiado por uma rede de computadores e por uma força controladora, mas também está presente Philip K. Dick na estranheza do indivíduo (e do leitor) perante o que não se compreende. A personagem lutará primeiro pelo regresso ao seu mundo, depois por estar com a mulher de quem se apaixonou e, finalmente, por tentar compreender a loucura em que se meteu.
O último livro que encontrei é um romance virtual, publicado na internet por Fernando Aracena. Latinoamérica 2025 conta a história de uma guerra do futuro. "Hispanoamericanos do futuro sustêm uma guerra que poderia converter a região numa nova superpotência hegemónica que ditará o destino do planeta. Como primeiro passo, uma guerrilha hispanoamericana desencadeia ataques de terrorismo cibernético. O risco é grande mas justificado: estão em jogo a viabilidade ecológica do planeta e a sobrevivência do terceiro mundo". A narrativa tem todos os elementos de um romance de ficção científica de aventuras. Mais que um romance, trata-se de uma saga, abundante e com uma história imensa onde convergem tecnologia, política, ecologia, etc. É uma produção sumamente notável que, infelizmente, tem muito poucos leitores e quase nenhuma publicidade. A melhor definição do romance é a que o próprio autor faz dele: “ameno, leve e high-tech”. Este texto serve para demonstrar que as editoras não são os únicos caminhos disponíveis para a publicação de textos atraentes e diferentes.

Em jeito de conclusão

Os livros aqui descritos não são todos os livros de ficção científica publicados na Bolívia. Existem com toda a certeza mais alguns, talvez contos e quem sabe se algum grande autor à espera de surgir. Mas servem como exemplo para mostrar o que foi feito até agora. Escreveu-se mais ficção científica do que se crê, e muita mais do que se conhece. Mas ainda estamos de fraldas, não porque não existam escritores que estejam dispostos a deitar mãos à obra das suas narrativas, mas sim porque faltam leitores que recebam estas obras nos meios de comunicação, nas associações culturais, nas editoras. Existem escritores, existem leitores, a própria Bolívia tem os elementos necessários para ser uma narrativa de ficção científica, só falta fazer coincidir esses três elementos num ponto de encontro comum. Talvez a internet possa funcionar como sistema de publicação, talvez nomes como os de Edmundo Paz Soldán ou Alison Spedding sirvam para promover um pouco mais esta tendência. Mas creio que para compreender o que se vai passando na Bolívia e para ficcionar o que podemos acabar por sofrer se não tomarmos cuidado, é muito importante ler boa ficção científica escrita na Bolívia.

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