R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

À Boleia Pela Ficção Científica Francesa

por Jean-Claude Dunyach

tradução de Jorge Candeias

artigo publicado em 08.08.2003

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A FC francesa tem um passado glorioso (lembram-se de Júlio Verne?) e, esperamos, um futuro brilhante. Mas a situação presente é um pouco mais complexa e difícil de descodificar. Especialmente quando tentamos avaliá-la com os mesmos parâmetros da FC americana — ou anglo-americana. A definição do que significa FC não é exactamente a mesma dos dois lados do Atlântico. Nos Estados Unidos, a FC é frequentemente confundida com o Sci-Fi (Star Trek juvenil, séries ligeiras de fantasia ou universos partilhados, para citar alguns exemplos comerciais), enquanto que a maioria dos autores franceses reivindicam-na como “literatura no seu melhor”. Disney contra o Louvre, se entendem o que quero dizer. Claro que ambas as formulações são demasiado estreitas para serem inteiramente verdadeiras, mas também não são inteiramente falsas. Vejamos porquê.

1) O background cultural

Em primeiro lugar, é preciso compreender que a França — e, na realidade, a maior parte da Europa — tem um background cultural distinto e que a FC não desempenha aqui o mesmo papel que no mundo anglófono. A televisão francesa, por exemplo, não está realmente interessada na FC. As mini-séries francesas são com frequência baseadas em romances dos séculos 18 ou 19 (o que não é tão aborrecido como se possa pensar, embora seja fraco em termos de efeitos especiais e sabres de luz — e Depardieu tem sempre um dos papéis principais). Séries famosas de TV como Star Trek, Babylon 5, Millenium ou Doctor Who são quase ignoradas em França. Os X-Files foram um sucesso gigantesco, mas a exibição em França fez-se com um ano de atraso relativamente aos EUA, o que significou que vários detalhes de X-Files, the movie não foram compreensíveis para a maioria dos espectadores.
Tão-pouco temos o equivalente da banda desenhada americana. Não há cá Batman, X-Men ou Pessoas-Aranha. Não há cá universos partilhados onde o Juiz Dredd se junta ao Punisher para combater vilões... Não há cá nenhum equivalente de Sandman — o que é mau. Mas temos toneladas de banda desenhada de FC, com bastantes artistas famosos, de Moebius a Caza, passando por Bilal, Bourgeon e Mézières (este último trabalhou com Besson e serviu de inspiração para muitas séries americanas, como Babylon 5) e por muitos recém-chegados. Os cenários são com frequência elaborados e bastante complexos, e estas obras são encaradas como objectos culturais aceitáveis. Mas um álbum de banda desenhada tem frequentemente preços acima de 10 euros. Os pais podem comprá-los, os filhos não.
E se se é um cineasta famoso e se quiser filmar um filme de FC (Luc Besson, por exemplo, ou Jeunet), é-se quase forçado a trabalhar com Hollywood. Parece não haver dinheiro disponível para projectos de FC no cinema francês, ainda que esta situação possa mudar num futuro próximo.
Ou seja: aquilo a que chamamos FC em França é principalmente a FC escrita. O fosso cultural entre os livros franceses de FC e os seus equivalentes visuais provenientes do outro lado do Atlântico é bastante grande.

2) Uma breve viagem pela história

A ficção científica francesa foi quase morta pela Primeira Guerra Mundial e só começou a sua ressurreição enquanto movimento no final dos anos 50. Foram publicados alguns livros de antecipação entre as duas datas, mas sem qualquer etiqueta de FC — veja-se por exemplo La planète des singes (O Planeta dos Macacos) ou Le Voyageur Imprudent.
Durante os anos 60 e no princípio da década de 70 foram publicados regularmente em França muitos autores importantes provenientes dos EUA ou da Grã-Bretanha. Havia muitas colecções diferentes — desde o livro de bolso até livros com encadernações luxuosas — inteiramente dedicadas à FC estrangeira. Paralelamente, uma colecção popular chamada Fleuve Noir Anticipation especializou-se em romances curtos — o equivalente francês dos pulps — de autores locais. Nessa época, o público encarava os autores franceses como pálidas cópias dos seus competidores anglo-americanos.
Esta situação evoluiu um pouco quando alguns autores franceses — Michel Jeury, Philippe Curval — foram publicados em colecções famosas como a Ailleurs & Demain (noutros lugares e amanhã). Estes livros eram não apenas excelentes no sentido anglo-saxão tradicional da FC, mas eram também diferentes. Inspirados por experiências literárias como o noveau roman, podiam considerar-se o equivalente francês da New Wave britânica.
Entretanto, uma geração mais nova de jovens revoltados usava a ficção científica como um meio para pôr em causa a sociedade francesa tal como ela era. Queriam usar a FC como uma forma de fazer política. Uma das colecções criadas nessa época chamou-se Ici & Maintenant (aqui e agora), como resposta à estabelecida Ailleurs & Demain. É interessante notar que bons autores como Jeury ou Curval foram publicados por ambas as colecções.
Infelizmente, embora as mensagens expressas por esta “FC política francesa” fossem interessantes, demasiados livros — ou contos — desse período foram considerados mal escritos pelo público. Em reacção, emergiu no princípio dos anos 80 um breve mas intenso movimento neoformalista chamado “Limite”, do qual faziam parte novos autores como Emmanuel Jouanne, Francis Berthelot ou Antoine Volodine. Os membros do “Limite” consideravam a ficção científica como um meio de experimentação literária e adoptaram uma atitude pós-moderna perante a escrita. Foram publicados independentemente pelos autores vários romances e contos, mas a sua primeira antologia comum foi também a última...
Convém notar que a ficção científica francesa não estava particularmente interessada no espaço, ainda que saíssem regularmente alguns “westerns in space”. O género da space opera era algo principalmente associado à FC anglo-saxónica.
Por essa altura — meados dos anos 80 — tinham surgido muitos novos autores e a FC francesa vangloriava-se de incluir mais de quarenta escritores profissionais (“profissionais” significa, bem entendido, que eram publicados profissionalmente, mas eram muito poucos os que ganhavam dinheiro suficiente para sobreviver. O mercado francês era demasiado pequeno, e os livros franceses só raramente eram traduzidos para outras línguas). Uma revista mensal — Fiction — publicava pelo menos uma história de autor francês por número, lançando oito a dez “novos autores” por ano. Antologias regulares abriam-se a histórias francesas e uma antologia especial intitulada Futurs au Présent foi inteiramente dedicada a novos autores, ainda não profissionais. A Futurs au Présent revelou Serge Brussolo e Jean-Marc Ligny — dois autores franceses de primeira linha — e foi seguida alguns anos mais tarde por Superfuturs. Entretanto, a Editions Fleuve Noir publicava quase sessenta livros franceses por ano. Os novos autores iam lentamente substituindo os seus antecessores.
Mas, infelizmente, o final dos anos oitenta e o início dos noventa caracterizaram-se por uma grande crise editorial.
A Fiction desapareceu nessa época, junto com a antologia anual Univers. Muitos editores de FC reduziram a sua actividade e a maioria deixou de publicar novos autores franceses. A única excepção foi a Fleuve Noir Anticipation — mas só publicava trinta livros de FC francesa por ano, enquanto fazia várias tentativas infrutíferas de publicação de tie-ins do Star Trek ou séries ligeiras de Fantasia. Foi a Fleuve Noir que revelou quase todos os novos autores do início dos anos noventa como Ayerdhal e Serge Lehman — para não falar do belga Alain le Bussy, do suíço Wildy Petoud ou do canadiano Jean-Louis Trudel. A única excepção foi Pierre Bordage, um romancista brilhante que foi descoberto por uma editora regional e escalou o caminho da fama em pouco mais de um ano.

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