R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

A Viagem

editado por Silvana Moreira e António de Macedo

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 03.07.2005

A Viagem é a última das antologias bilingues editadas até hoje pela Simetria, encerrando um ciclo que se iniciou em 1996 com Inconsequências na Periferia do Império (oficialmente editada pela Câmara Municipal de Cascais mas na prática a edição foi gerida pelas mesmas pessoas que levaram a iniciativa até 2000).
São ao todo 11 contos ou, mais precisamente, 5 noveletas, 5 contos e 1 conto curto, e, ao contrário de volumes anteriores, todos eles foram escritos originalmente em português, juntando-se na página de créditos três autores brasileiros, um britânico radicado em Portugal e sete portugueses. Somando toda esta gente ao tamanho dos contos e ao facto de a antologia os ter a todos repetidos, em inglês, do lado de trás do volume, tem-se como resultado um livro relativamente volumoso para os padrões portugueses (o que é bom, ou seria se metade da lombada não fosse desperdiçada com uma versão inglesa que, provavelmente, quase ninguém leu) escrito em letra miudinha (o que é mau, tanto mais que o livro é largo) que transforma a leitura num exercício esforçado.
Os três brasileiros incluem Gerson Lodi-Ribeiro, Carla Cristina Pereira e Hidemberg Alves da Frota. O primeiro é muito bem conhecido entre nós graças às suas duas colectâneas editadas pela Caminho e a uma presença assídua nas publicações portuguesas. A segunda, embora nunca tenha editado um livro entre nós, também é bastante bem conhecida, em especial graças ao seu conto Xoxiquetzal e a Esquadra da Vingança, que conseguiu a proeza de chegar a finalista nos Sidewise Awards. Quanto ao terceiro, este seu conto foi a sua estreia em Portugal, país onde não voltou a publicar até hoje.
Gerson Lodi-Ribeiro apresenta Caminhos sem Volta, uma noveleta de ficção científica com algumas características de space opera, que se desenrola num universo em que a Humanidade está acompanhada por uma segunda civilização tecnológica, os gandolphianos, e salta de estrela em estrela através de uma rede de estações de teletransporte que têm como efeito secundário (visto armazenarem os dados relativos a cada transmissão) um certo tipo de imortalidade. Neste universo, é encontrada uma nave que nem é humana nem gandolphiana e cujo rumo aponta para um certo planeta, onde os primeiros exploradores desaparecem sem deixar rasto, o que o protagonista é enviado para investigar. Aí chegado, descobre um alienígena telepático e predatório aprisionado no planeta, e vê-se obrigado a decidir o que fazer. É um conto competente, mas não é dos melhores contos deste autor brasileiro, que já nos brindou com bastante melhor.
Carla Cristina Pereira afasta-se desta vez da história alternativa e também nos apresenta, em Longa Viagem Para Casa, uma noveleta de FC espacial, que ganhou o prémio Simetria de conto desse ano. É uma história de naufrágio espacial e de sobrevivência, mas também é a história de como reage a família de uma exploradora, que se julga morta há cerca de dez anos, quando ela regressa das inóspitas paragens do Sistema Solar exterior. Uma noveleta bastante boa, ainda que o tom sentimental que por vezes toma possa afastar alguns leitores.
Hidemberg Alves da Frota estreia-se com um conto, Nosso Destino, que é digno de nota por ser a primeira publicação em Portugal de algo relacionado com o universo partilhado da Intempol, concebido por Octávio Aragão. O conto, em si, é excelente... para um escritor tão jovem. Frota era ainda adolescente quando o escreveu, e o resultado mostra uma maturidade literária muito para além do que seria de esperar em alguém da sua idade, com um texto ágil, correcto e, em geral, bem concebido. Tomara muitos escritores de FC mais velhos escreverem assim. Mas a verdade é que apesar disso se nota a inexperiência aqui e ali, e o conto acaba por deixar no leitor (em especial naquele não iniciado nas andanças intempolianas) uma sensação de confusão que poderia ter sido evitada, o que faz deste conto o pior entre os brasileiros.
Quanto aos portugueses, naturais ou naturalizados, a única das vozes nacionais com mais prestígio a marcar presença é Daniel Tércio. O resto do painel é composto por Manuel de Seabra, Maria de Menezes, Luís Richheimer de Sequeira, José Xavier Ezequiel, David Alan Prescott, Silvana de Menezes e Ricardo Madeira.
Tércio apresenta O Caçador, uma fantasia lírica sobre o pecado e a inocência, em que um unicórnio é móbil e vítima. É um texto com a qualidade literária a que Tércio nos habituou, o que faz dele, automaticamente, um dos melhores contos do livro, muito embora já tenhamos lido melhor deste autor. Curiosamente, um dos seus pontos fortes é o final, algo em que Tércio não costumava ser muito bom.
E, em termos de portugueses, é tudo o que há de bom.
Manuel de Seabra, autor radicado em Barcelona, tem talvez o pior conto do livro com As Estrelas que tu Quiseres. Não só a qualidade do texto em si é francamente má, de nível amador, com repetições e construções frásicas defeituosas e diálogos pueris, como a história que é contada não é em nada melhor, dando a sensação de ter sido composta à pressa e depressa, sem se perder grande tempo com detalhes insignificantes como coerência, credibilidade das personagens e, até, relevância do que se conta. Muito, muito mau.
Maria de Menezes melhora o nível um bocadinho em Razões de Estado, uma longa noveleta que pretende ser FC humorística. Mas não o melhora muito, porque há uma fronteira fina entre o humor e a asneira, e nesta história é frequente vermos Menezes declaradamente do lado de lá dessa fronteira. Ele é uma nave que atravessa um cinturão de asteróides como se acelerasse por uma auto-estrada em hora de ponta, ele é um planeta cheio de gente que fala russo e tem todas as falas escritas em bom português mas quando um treinador de futebol que é contratado para implementar o desporto no planeta chega põe-se a dizer coisas como "tem aqui minino bom di bola, Majêstade", numa caricatura de português brasileiro que é bem capaz de soar insultuosa do outro lado do oceano (já para não falar do estereótipo), ele é uma rainha que é adorada pelo seu povo porque fornica com toda a gente, ele é uma história que em geral nem tem pés nem tem cabeça, enfim, o que ele é mesmo é um desastre, salvo apenas, até certo ponto, por um português competente. Mas sem ponta de piada, ainda por cima.
Luís Richheimer de Sequeira aparece na mesma linha engraçadinha com a noveleta Aerofobia, uma história com pouco que a ligue à FC (apesar de se desenrolar num futuro relativamente próximo) e em que os elementos de FC que surgem no cenário não são usados para nada no decorrer da narrativa, o que nem teria grande relevância caso o resto prestasse. Trata-se de uma história de pirataria aérea que é resolvida porque (reparem bem no engenho da coisa) uma passageira é aerofóbica e se passa. Só isso. Uma passageira tornada refém passa-se da cabeça e tudo se resolve. Uau!
José Xavier Ezequiel, com Os Órgãos de Estaline, consegue a proeza de se destacar graças a um conto que consegue ser razoável. Num ambiente futuro distópico e relativamente sombrio, com fortes influências cyberpunk, segue-se a trejectória de um agente dos serviços secretos envolvido numa trama complexa de conspirações políticas. Infelizmente, Ezequiel não é inteiramente bem sucedido em fazer envolver o leitor no seu universo (o conto será, talvez, demasiado curto para isso), e demasiada da acção passa-se longe dos olhares do protagonista, que só dela se dá conta por ouvir dizer. Trocando por miúdos, o conto poderia (e talvez merecesse) ser bastante melhor.
E que dizer do conto curto Laranji 2500, de David Alan Prescott? Que tem um português de pior nível que outros contos do mesmo autor, inaceitável numa publicação que se pretende profissional (muito embora excelente para alguém que não é falante nativo da língua), algo que seria solucionado facilmente caso este livro tivesse sofrido um tipo qualquer de revisão? Que a história, transpondo as navegações portuguesas de 1500 para um milénio mais tarde é um completo disparate do princípio ao fim? Que, mais uma vez, a tentativa de fazer humor se esboroou por completo numa patetice sem ponta de piada? Tudo isso é verdade, e tudo isso põe este conto em confronto directo com o de Seabra pela dúbia distinção de ser o pior do volume.
Comparativamente, O Efeito Prado, de Silvana de Menezes, destaca-se pela positiva. Escrito com competência, trata-se de uma "fantasia científica" (a melhor tradução que encontro para o conceito de science fantasy) sobre a descoberta e aproveitamento da energia proveniente de obras de arte. E até o humor que aqui existe funciona relativamente bem, o que faz com que este conto, não sendo bom, seja pelo menos razoável.
Infelizmente, a antologia volta a afundar-se com a noveleta O Vôo 7810 de Ricardo Madeira, que a fecha. É verdade que o nível do português do autor melhorou bastante aqui relativamente a esforços anteriores seus mas, como estes eram praticamente ilegíveis, isso não coloca o texto deste conto a bom nível. Mesmo assim, é o português aquilo que a noveleta tem de melhor: a história é uma sucessão de tal modo densa de clichés que é impossível lê-la sem pensar "eu já li — ou vi — isto" a cada virar de página. Não parece haver nada de original nesta história de terror que gira em torno de uma viagem de avião e de um cristal demoníaco que é impossível deitar fora.
Tudo somado, e apesar das histórias de qualidade que, apesar de tudo, o livro contém, o nível das outras é de tal forma baixo que a antologia é globalmente má, a pior — a grande distância — de todas as editadas pela Simetria. As boas histórias salvam-na da bola preta, mas só chegam para:

Gostou deste texto? Ajude-nos a oferecer-lhe mais!

 

A Viagem

editado por Silvana Moreira e António de Macedo

Simetria

2000

Críticas a obras editadas por Maria Augusta e António de Macedo

Efeitos Secundários

Fronteiras

Críticas a obras de António de Macedo

O Limite de Rudzky

Sulphira & Lucyphur

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

Artigos de Jorge Candeias

Críticas de Jorge Candeias

Entrevistas de Jorge Candeias

Jorge Candeias - página de autor

dos autores no E-nigma:

Pátrias de Chuteiras, por Gerson Lodi-Ribeiro

Terror em Pedra Torta, por Miguel Carqueija e Gerson Lodi-Ribeiro