R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias

por João Barreiros

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 12.04.2002

republicada em 04.07.2003

"Porque o tédio, convenhamos, é o pior dos crimes", João Barreiros resolveu dar a público o seu primeiro livro, no qual juntou 3 noveletas e 5 contos. O ano era 1994, e a ficção científica portuguesa estava no estado mais próximo da efervescência por que já passou.
São oito histórias de enorme qualidade, capazes, todas elas, de ombrear com o que de melhor nos chegava do estrangeiro na época e com a vantagem acrescida de não estarem mal traduzidas. Ou seja, de não estarem traduzidas e surgirem logo, de origem, em bom português.
O livro abre com O Caçador de Brinquedos, história distópica em que um vírus cibernético extraterrestre contamina toda a "cibervida" numa Terra futura em que cada electrodoméstico vem equipado com inteligência artificial. Os dóceis instrumentos destinados ao conforto humano tranformam-se assim em máquinas maníacas assassinas, que não poupam nada, a não ser as crianças.
Saltamos depois para um planeta distante, onde Quatro milhões de Lolitas sexualmente hiperactivas, e todas iguais, mantêm cativo um professor com um fraquinho involuntário por meninas adolescentes em que a inocência aparente só esconde uma enorme perversidade. Seria um conto surrealista, se tudo não tivesse uma explicação terrivelmente verosímil.
Passamos de seguida Um dia com Júlia na Necrosfera. É um conto bizarro, passado num mundo virtual, a necrosfera, criado por uma morta, a Júlia, repleta de desordens nervosas. Mas estamos num tempo em que a morte já não é definitiva, e há os Pescadores, especialistas em pescar os mortos das suas necrosferas, trazendo-os de novo à vida. Mais fantástco que FC, este é um conto em que nada é o que parece. Dir-se-ia feito de propósito para fãs do Philip K. Dick.
A gaia-concorrência, sendo um bom conto, é provavelmente o menos bom do livro. Numa Lisboa hiper-violenta, um pobre diabo que só quer ser deixado em paz é assaltado por sucessivos vendedores de armamentos, cada um mais louco que o anterior, que descem de órbita enquanto batalham uns contra os outros. Capitalismo desenfreado? Nem mais.
E é o capitalismo desenfreado o tema também de "Saldos", o conto seguinte. O Sousa é o paradigma do consumidor enquanto vítima, que tenta ir comprar alguns produtos de primeira necessidade a um centro comercial, esforçando-se, sem sucesso, por resistir à publicidade imensamente agressiva e intrusiva (pode dizer-se mesmo hipnótica) que o procura convencer a comprar tudo aquilo de que não tem a mínima falta. É uma fabulosa sátira à sociedade de consumo, repleta de um humor feito de puro ácido clorídrico.
No fim do livro entramos no universo das aranhetas, universo ficcional em que alienígenas (que não o são propriamente, isto é, não são os alienígenas, não passando de gâmetas eternamente envolvidas em guerras entre os seus próprios ninhos) invadem o Sistema Solar e desenvolvem um gosto letal pela literatura humana, não sem antes terem deixado a Terra inabitável e a Lua (vagamente) habitável.
E entramos no universo das aranhetas primeiro subtilmente, com a Balada para um Katastrofopoeta, outro dos pontos menos altos do livro, em que um poeta das catástrofes, contratado para relatar a destruição de Lisboa por um gigantesco macaréu, resolve em vez disso armar-se em Quixote e ir salvar a sua amada, que está interessada em tudo menos em ser salva. E depois decididamente, com as duas noveletas finais: Kulturkomandos e Alice e a Semente de Nyack-Nyack. Na primeira, um grupo de comandos culturais a soldo de um dos ninhos é enviado para eliminar um ninho rival, só para descobrir que não está bem onde pensava que iria estar. Na segunda, é enviada para a Lua uma semente duma planta especial, a planta de Nyack-Nyack, capaz de absoluto mimetismo e de fazer qualquer coisa para sobreviver. A ideia era contrabandear essa planta a fim de utilizá-la na guerra entre ninhos, mas as medidas de contenção falham quando a nave que carregava as sementes se despenha numa cratera lunar.
Mas mesmo com tantos contos excelentes, o livro tem algumas falhas, e a mais importante é passar a ideia de tratar-se de um aglomerado algo desconexo de universos que deveriam ser coerentes, a par de alguns contos isolados. É como se o Barreiros tivesse resolvido publicar, olhasse para o que tinha escrito e descobrisse que não tinha pronto nenhum dos livros que andava a escrever, resolvendo publicar na mesma, tudo em conjunto. Por isso, paradoxalmente, este livro acaba por saber a pouco. Deixa o desejo de ler um romance ou fix-up das aranhetas, outro do universo do Caçador de Brinquedos e, com as sobras e mais alguns contos, um terceiro livro, este sim, colectânea de contos sem ligação entre si.
Apesar desta falha, é um dos melhores livros da FC portuguesa, dos melhores livros de FC publicados em Portugal e, provavelmente, em língua portuguesa, e um livro que, se traduzido, faria uma excelente apresentação da nossa FC lá fora. Por isso tudo, dou-lhe 5 estrelas.

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O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias

por João Barreiros

Editorial Caminho

Colecção Caminho Ficção Científica, nº 167

1994

Críticas a outras obras de João Barreiros

A Verdadeira Invasão dos Marcianos

Duas Fábulas Tecnocráticas

Terrarium

Uma Noite na Periferia do Império

Barreiros prefaciou:

O Planeta das Traseiras

Artigos de João Barreiros

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

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