Bem-vindo ao Planeta Verde
por Keith Brooke
tradução de Jorge Candeias
conto publicado em 09.08.2002
republicado em 04.08.2003

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"Ficar aqui assusta-me mais", disse-lhe. Aqui na Europa do Norte tínhamos a sorte de estar numa região relativamente estável, mas não demoraria muito até que o caos desabasse sobre nós, a praga e a guerra e as carências destruindo tudo.
"Não, não é isso."
"Que é, então?"
"A selecção", disse-me, lágrimas a transbordar dos seus grandes olhos escuros. "Tu tens as capacidades, o treino: eles nunca poderão recusar-te".
Percebi onde ela queria chegar. "Tu és inteligente", disse-lhe. "Tens experiência médica. Seriam loucos se não te oferecessem um lugar".
"Eu abandonei a faculdade", lembrou-me. "Não conseguia ver nela um objectivo: vai acabar tudo, não vai?"
Com afagos, limpei-lhe lágrimas das bochechas, com beijos removi o sal. "Uma promessa", disse-lhe. "Um pacto: ou vamos juntos ou não vamos. Nunca poderia deixar-te".
Falava verdade: nem tinha considerado a possibilidade de a deixar para trás. Abandonaria tudo pelo meu amor, Jacquie.
-oOo-
"Mais importante do que isso, as sondas iam equipadas com conjuntos de sensores ecológicos ... As observações mostraram que, embora a vida seja com certeza abundante no nosso planeta irmão, a sua natureza é primitiva, e a maioria é unicelular."
Asimov's Guide to Science, Isaac Asimov
-oOo-
A dor diminui com a passagem do tempo, os anos apagam as memórias uma a uma.
Mas uma delas se mantém forte: a cara de Jacquie, uma expressão que não consegui entender. De facto, não tenho a certeza, mesmo agora, de entender a mistura complexa de emoções que a fizeram pôr o ar que pôs quando a Comissão lhe disse que podia ir para Marte.
Triunfo, claro: "Ofereceram-me um lugar na passagem", disse-me.
Suponho que alívio, depois de meses de trabalho e expectativa.
Culpa também, espero. Ela já sabia: "Recusaram-me", disse-lhe. "Chumbei nos físicos".
"Não, não chumbaram", disse ela. "Eu falei com o Comissário Andresson. Tu podes ir in virtuo. Eles querem-te, amor. Querem-nos aos dois!"
"Tu vais na mesma, apesar do nosso acordo". Deus, como me senti baixo dizendo aquilo daquela maneira, como me senti baixo por ter de dizê-lo.
"Como posso não ir? De resto, podemos ir os dois à mesma, só que tu não estarás lá em corpo."
Nessa altura virei a face, incapaz de encontrar um olhar que não podia compreender. As mãos dela rodearam-me a cara, viraram-me a cabeça, e foi a vez de Jacquie me limpar lágrimas das bochechas com afagos, e com beijos remover o sal. "Podemos ir", murmurou excitada, faminta. "Podemos ir juntos, amor."
-oOo-
Eu poderia estar agora em Marte, ou pelo menos poderia ter lá uma parte de mim, uma cópia de mim.
Muitos dos que eram enviados in virtuo ficariam armazenados por tempo indefinido nos vastos núcleos de memória, em órbita, à espera de que os seus conjuntos específicos de capacidades fossem necessários. Eu, no entanto, tinha garantido um lugar na superfície desde o início: havia necessidade de pessoas como eu, asseguraram-me.
Ou, pelo menos, havia necessidade de cópias de pessoas como eu.
Transmitido para um receptor na órbita de Marte numa sequência de impulsos de rádio de alta densidade de dados, eu teria sido reconstituído no núcleo de memória, reconstruído e reenviado para a superfície. Aí, teria sido introduzido na rede neuronal de um sistema agrícola: eu teria pedido qualquer coisa móvel, se bem que não tivesse a certeza de ser atendido. Detestaria ser a inteligência de controlo de uma das vastas cúpulas de crescimento que estão espalhadas pelas cinturas agrícolas. O ideal teria sido um dos drones de criação agrícola que trabalham na adaptação das técnicas agrícolas terrestres ao regime de baixa temperatura e baixo teor de nutrientes das terras virgens de Marte: um papel exigente, não um papel protector.
Mas quanto de mim perderia ao passar por tal processo? Quanto de mim seria extirpado na preparação para a transmissão e na adaptação ao meu novo papel?
Em Marte, eu teria um corpo muito mais durável que um de carne e osso. Poderia ver, ouvir, cheirar, tactear e saborear. Manteria o raciocínio, a imaginação, a curiosidade.
Mas pergunto a mim mesmo se sonharia. Sob o meu céu marciano, as estrelas ainda familiares, nada alienígenas. Sonharia?
-oOo-
"Não", disse eu ao comissário. "Não o posso fazer. Não vou deixar que envie para Marte uma cópia diminuída de mim, não foi para isso que dei o nome."
Chegar tão perto era uma das coisas mais dolorosas. Estar lá, se não fosse o órgão inconstante no meu peito.
Ele sorveu ar, e depois: "Espero que reconsidere", disse. "Você seria um membro muito valioso do programa."
Abanei a cabeça, levantei-me devagar da cadeira no gabinete da Comissão de Passagem.
Nada do que ele poderia dizer me convenceria. Eu simplesmente não suportaria estar lá, na superfície de Marte, e no entanto incompleto. Não suportaria estar lá e continuar a preocupar-me.
Pior: não suportaria estar lá e já não me preocupar.
Acho que não culpo a Jacquie por ir. Por quebrar o nosso pacto de amantes. Poderia realmente negar-lhe uma oportunidade dessas?
Permaneço na Terra. E preocupo-me, mesmo hoje, cinco anos passados.
-oOo-
"As oportunidades para aproveitar a biosfera primitiva de Marte podem não ser grandes, mas apresentam-se como uma alternativa viável ao que resta da biosfera da Terra, devastada por uma revolução industrial rápida tornada demasiado fácil pelos ricos recursos metalíferos do nosso planeta."
Mars Fact Pack, Manual Educativo da UNSA
-oOo-
A festa ferve por trás de nós, segura na cúpula de luxo do Jerry. Pergunto a mim mesmo durante quanto tempo sobreviverá a cúpula. O tempo da opulência já passou. O tempo da maioria das coisas já passou.
Mais uma festa do Fim do Mundo, como se não tivesse importância.
Carmel pega-me na mão, faz-me descer os degraus de pedra. Pés nus, arranhados por areia grossa.
Por vezes ainda é difícil acreditar que isto é mesmo o fim, aqui na nossa bolsa de semi-civilização somos facilmente iludidos. Mas, por trabalhar no Ministério, eu vejo os relatórios, as projecções. Sei tudo sobre as guerras por recursos, o aquecimento, a desertificação que se intensifica: tudo porque fomos amaldiçoados com este planeta rico em recursos. Os metais que fazem vermelhas a areia e as rochas, a superabundância de combustíveis fósseis, tornaram tudo tão fácil.
Puxo Carmel para mim, agarro-me às suas roupas. Tudo o que resta é viver dia a dia. Algo que a nossa espécie conhece bem.
-oOo-
A temperatura é de quarenta graus negativos, com o alinhamento deste vale a servir para aprisionar os raios solares: um sítio adequado para mais um projecto experimental.
Coloco uma porção de solo no Compartimento A, saboreio-a, aqueço-a e cheiro os gases que se soltam. A análise confirma o meu palpite inicial: o solo é rico - vamos fazer testes aqui, verificando novas variedades adaptadas às frias condições de crescimento.
Trabalho duramente, lavrando o solo incrustado de líquenes.
Mais tarde, faço uma pausa.
Está escuro.
Olho para as estrelas, tão familiares. "Estou em Marte", digo de novo a mim mesmo. Depois olho mais para cima, seguindo a eclíptica, até encontrar o ponto azul que é a Terra.
Interrogo-me como teria dado autorização para que trouxessem uma cópia de mim mesmo para Marte: não consigo recordar-me dos pormenores, mas de algum modo não me parece que o tivesse desejado. Eles tê-lo-iam feito de qualquer maneira, eu sei: não permitiriam que os caprichos pessoais se atravessassem no caminho do que é melhor para o êxodo.
Lembro-me agora de Jacquie. Vejo o seu rosto.
Lembro-me de amar Jacquie.
Sei que ela está em Marte em pessoa. Pergunto a mim mesmo se me seria possível procurá-la, contactá-la.
Pergunto a mim mesmo se o quereria fazer.

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