R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Bem-vindo ao Planeta Verde

por Keith Brooke

tradução de Jorge Candeias

conto publicado em 09.08.2002

republicado em 04.08.2003

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"Estou em Marte."
Não é uma afirmação incomum nos dias que correm, mas prefiro não contestá-la. Estamos num terraço, longe da multidão na cúpula do Jerry. Lá fora, apesar do calor abrasador, há a ameaça sempre presente de tempestades de areia.
Tenho estado a fitar os grandes olhos escuros de Carmel, inclinado sobre uma balaustrada de pedra, mas agora viro-me e sigo o olhar dela através do deserto invasor, dunas aguçadas brilhando num carmim de sangue onde a luz se derrama a partir da cúpula.
Uma lua convexa pende próxima do horizonte. Sigo o arco da eclíptica pelos céus do sul. Um ponto brilhante entre as estrelas: Júpiter. Vários diâmetros da lua para cima e para leste, e encontro o pequeno ponto verde do nosso planeta irmão, Marte.
Dói, mesmo agora.
Afasto os olhos, devolvo-os a Carmel, que continua a fitar o planeta verde. Conhecemo-nos minutos atrás, ambos em busca de refúgio de mais uma festa do Fim do Mundo.
Reparo agora que ela se parece um pouco com Jacquie: qualquer coisa difícil de definir nos olhos, a inclinação da cabeça. Deve ter sido isso que me atraiu, o que me faz querer falar-lhe, segurá-la, senti-la - arfante, quente, urgente - por baixo de mim.
É provavelmente por isso que não acredito numa palavra do que me diz.
-oOo-
"...análises da atmosfera marciana através de telescópios de infravermelhos revelaram uma atmosfera dominada por azoto e, em menor quantidade, por oxigénio: um estado de desequilíbrio permanente que nos sugeriu fortemente que Marte suportava vida."
The Ages of Gaia, an obituary for our dying Earth, James Lovelock
-oOo-
Suponho que seja da época. Por esta altura, segundo o programa, eu teria passado dois anos no espaço: a caminho de Marte, em órbita numa das estações de detenção em torno do planeta verde, à espera de vez, contente por ter ao menos uma vez por que esperar.
Neste momento poderia já ter aterrado em Marte, coisa que fiz tantas vezes em sime ao longo de todos aqueles anos. Talvez Carter City: uma cratera forrada para reter o calor, para que pudéssemos aventurar-nos no exterior sem demasiadas camadas de protecção.
Carter City seria um primeiro destino provável: um dos centros principais para o esforço de colonização, um ponto de trânsito para o êxodo humano em fuga do seu planeta natal moribundo. Sou um cientista agrícola experiente, especializado em técnicas de cultivo em baixas temperaturas - cada vez mais inúteis no nosso planeta natal sobreaquecido pelo efeito de estufa, mas inestimáveis em Marte, pensava eu durante o treino. Deveria deixar Carter bastante depressa, em direcção às cinturas agrícolas em torno de uma qualquer das novas cidades. Instalar-nos-íamos aí e, trabalhando com grandes frotas de máquinas para criação e colheita, eu estabeleceria sistemas agrícolas para alimentar as colónias crescentes.
Mas essa primeira aterrissagem! Teria feito tudo o que estivesse ao meu alcance para me assegurar de que a Jacquie e eu fôssemos enviados para a superfície na mesma vaga de colonos. Também a Jacquie teria usado todos os cordelinhos que pudesse para nos manter juntos. Isso tinha sido sempre parte do acordo, do pacto que tínhamos discutido tantas vezes. Julgo que teríamos sido bem sucedidos: embora as autoridades do êxodo desencorajem qualquer tendência para a reprodução excessiva, reconhecem o valor de relações estabelecidas para a construção de comunidades.
Jacquie e eu, pondo os pés no planeta verde pela primeira vez. Um novo começo para nós, uma nova chance para a nossa espécie. BEM-VINDOS A MARTE, dizia sempre o letreiro nos simes de treino e, estou certo, também na realidade.
-oOo-
"A abundância de minerais ricos em ferro na crusta planetária significa que a Terra, se não fosse a sua ténue pele verde de vida, seria vermelha vista do espaço. A Terra é um planeta ferrujento."
Asimov's Guide to Science, Isaac Asimov
-oOo-
Assim que entrei na sala soube o que ele me ia dizer, ainda que lhe tivesse custado cinco minutos de uma análise contraditória para me dar o simples veredicto: não.
Fiquei a olhar para ele. Grisalho, olhos amarelecidos como velhos jornais, a cada minuto ou dois parava a meio das frases para sorver com ganância de uma máscara de ar. Doença degenerativa nos pulmões: era claro que ele não faria parte do êxodo.
"Você diz-me que os meus resultados de aptidão mental e psicológica estão nos dois percentis superiores", digo eu. "Que a minha formação, treino e experiência profissional oferecem um conjunto de capacidades fortemente valorizadas pela comissão". Já sabia tudo isso, e há bastante tempo: Teria sido excluído do processo de selecção dois meses antes se não tivesse obtido pontuações elevadas nos testes iniciais.
"Você diz-me que a minha actuação em cada um dos dezasseis simes foi altamente pontuável, que há muito pouca coisa que eu poderia ter feito melhor. E depois conclui que o meu requerimento para estatuto de passagem para Marte foi recusado..."
O comissário sugou oxigénio da sua máscara de plástico branco. "Você tem um coração disfuncional", disse simplesmente, por fim.
Rompendo o silêncio, continuou: "Arritmia: uma irregularidade no bater do coração. Pode ter sorte e viver até uma idade bem avançada - deixando que uma das outras doenças dos nossos tempos o leve... Mas, sujeito aos rigores do voo espacial, da adaptação a um ambiente estranho, a sua deficiência transforma-o num risco. Um risco demasiado grande para que a Comissão invista na sua passagem."
Calou-se, sugou ar da máscara.
"Que posso eu fazer?", perguntei-lhe. Não queria pedir, sabia que nada conseguiria, mas por uma vez a minha habilidade para gerir crises - que me servira tão bem durante os simes de selecção - abandonou-me. "Como posso conseguir a inversão desta decisão?"
Seria Marte ou Jaquie o que eu temia perder? Não sabia, não conseguia pensar.
"Há uma alternativa", disse o comissário. "Uma opção que recomendamos fortemente".
"Qual?"
Ele acenou. "Eu..." Outro sorvo de ar. "Eu vou para Marte", disse-me.
Fiquei a olhar para ele, aterrorizado, enquanto ele ingeria vários longos tragos de ar.
Era claro que ele tinha antecipado a minha reacção e estava a jogar com ela, manipulando-me. "Interroga-se como", disse por fim. "Na minha condição... A minha afirmação é incorrecta: deixe-me corrigi-la. O que eu queria dizer é que já estou em Marte. Tal como você, cumpri os requisitos para a passagem: o conjunto de capacidades, o perfil, a actuação nas simulações. Mas é claro que a minha condição física me exclui do programa - nunca houve a opção de viajar até ao planeta".
Outra pausa para o ar, e depois: "Há muitos papéis no programa para os quais a presença física não é um requisito. O processo de obtenção de perfis é exaustivo, o que nos permite reconstruir personalidades completas in virtuo - personalidades que podem ser embutidas no hardware do esforço de colonização. Que melhor inteligência para conduzir estações espaciais, veículos de exploração, drones mineiros e agrícolas, do que personalidades humanas completamente treinadas e experientes?...
"Pense nas contas do êxodo, meu amigo. Apesar de todas as guerras por recursos, das pragas e das outras calamidades dos nossos tempos, a espécie ainda conta biliões de indivíduos neste planeta em rotura. Quantos vaivéns temos? Quantos cargueiros de corpos em transbordo incessante entre a Terra e Marte? Quantos emigrantes julga que podemos transportar fisicamente? Temos hoje 25 000 no planeta verde. As melhores projecções dizem-nos que seremos capazes de transportar mais 50 000 até que a oportunidade desapareça devido a um desastre qualquer."
Mais ar. "Candidate-se à opção virtual, meu amigo, e estará livre do congestionamento físico do êxodo. Mapeámos a sua personalidade durante os simes: sabemos que é um candidato adequado. Detestaríamos perder o seu conjunto de capacidades."
Fiquei sentado, em silêncio, lutando para abarcar aquilo.
"Pense nisso", disse o comissário. "É a sua oportunidade de continuar a fazer parte da história humana."
-oOo-
Jacquie. Tão alta como eu, com a compleição de uma atleta natural. O cabelo escuro, cortado em comprimentos diferentes, dava-lhe um ar selvagem, um ar rebelde. Amar Jacquie era como perseguir sonhos à primeira luz da madrugada: era esquivo, divertido, sempre em ânsias por abraçar.
"Amo-te para sempre", murmurava ela ao meu ouvido na doce ressaca da paixão. E por vezes: "Iria atrás de ti até aos fins do mundo, meu amor."
"Até Marte?" perguntei-lhe um dia. Toda a minha vida formava um caminho nessa direcção, rumo ao êxodo. Ela devia sabê-lo, e no entanto a pergunta pareceu apanhá-la de surpresa.
Mais tarde: "Assusta-me", disse ela.

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