R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

A Espinha Dorsal da Memória

por Bráulio Tavares

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 03.07.2003

A Espinha Dorsal da Memória foi o segundo dos prémios Caminho a abrir portas, depois do inaugural Os Caminhos Nunca Acabam, de João Aniceto, e antes do terceiro e último dos romances premiados a ter um impacto no género em Portugal: O Futuro à Janela, de Luís Filipe Silva.
No caso do livro de Bráulio Tavares, as portas que se abriram foram franqueados quase uma década mais tarde por outros escritores brasileiros, e começou assim um intercâmbio entre as FCs dos dois lados do Atlântico que perdura até hoje.
E este livro merece a honra de abrir portas. Trata-se de uma colectânea dividida em duas partes. A primeira inclui sete textos entre o mini-conto e o conto, sem nada que os una a não ser serem contos de ficção científica e fantástico (mais de fantástico que de FC), a segunda é composta por cinco textos de maior tamanho médio, situados entre o conto curto e a noveleta, e passados num universo coerente, onde uma sucessão de portais de sentido único ligam planetas perdidos algures no espaço e no tempo, através dos quais a humanidade se vai lentamente expadindo em busca dos construtores dos portais e diversificando-se em culturas únicas e cada vez mais estranhas, adaptadas às condições próprias de cada um desses planetas, tendo em conta as alterações sofridas nos planetas anteriores.
Bastava esta última ideia, mesmo que a sua concretização tivesse sito apenas mediana, para que este livro se transformasse numa leitura indispensável no panorama da FC de língua portuguesa. Mas acresce a isto o facto de Bráulio Tavares ser um óptimo escritor, com um domínio da linguagem excelente e uma maneira hábil e muito inteligente de construir histórias. E o facto complementar e nada desprezível de estas qualidades estarem perfeitamente claras nestes doze contos.
Começa a primeira parte (e o livro) com um mini-conto de terror, intitulado Malassombrado, sobre o qual basta que se diga que consegue a proeza de criar no leitor um sentimento de inquietação em meia dúzia de palavras. Prossegue com Os Istarianos Estão Entre Nós, um conto curto onde a clássica situação do escritor que vê a sua história extravasar para a realidade funciona como uma espécie de fita de Moebius em que se acaba com uma invasão alienígena da forma mais absurda possível.
O conto seguinte, Catálogo de Exposição, mais um conto muito curto, passa-se no início do século 61, e dá alguns pormenores sobre uma exposição patente num museu situado algures, longe da Terra, e em particular sobre um item específico dessa exposição: uma massa amebóide de material biológico do tamanho de um asteróide. O efeito final é impressionante.
A História de Maldun, o Mensageiro é o primeiro conto de maior vulto da colectânea. Passado no sul da Península Ibérica logo após a econquista cristã, é uma história fantástica e legendária, contada na primeira pessoa pelo próprio Maldun, um mensageiro reformado (hoje chamar-lhe-iam "estafeta"), que teria uma vez, muitos anos antes, sido obrigado a enfrentar um território mágico (ou amaldiçoado) para levar um certo cavaleiro até ao mago Carandec. É das histórias mais fracas da colectânea, sem um fim propriamente dito, seguindo ao sabor das recordações erráticas de um velho, e sem inovar grande coisa.
Cão de Lata ao Rabo é uma bigorna que cai de repente sobre o leitor. Um único parágrafo de nove páginas, aliás, uma única frase de nove páginas, conta a história de uma experiência que corre infinitamente mal com um "fendedor-do-continuum", máquina que, como o nome indica, se destina a fender o continuum do espaço-tempo e ver o que fica para lá dele, sendo que o que é encontrado pelo cientista que faz secretamente a experiência é algo de que não estava à espera. Embora o tema seja algo banal, a concretização é simplesmente brilhante.
Mare Tenebrarum é outra história do tamanho de um parágrafo, este mais curto, com apenas quatro páginas. Um conto bizarro, que começa como uma inundação algures no Brasil rural e acaba de forma insólita e surreal. Dá ideia que o autor um dia, ao lavar a cara de manhã ou ao tomar banho, se lembrou de fazer uma história com um sorvedouro. E fez.
Encerra-se a primeira parte com Sympathy for the Devil, uma subversiva história de venda da alma ao Diabo de que não vale a pena dizer mais do que isto. O tema foi tratado milhares de vezes antes, e aqui está razoavelmente bem tratado, de forma... bem... a palavra é mesmo "subversiva", não há volta a dar-lhe...
Depois vem o ponto alto do livro, as cinco histórias, independentes entre si, ambientadas no universo de que já falámos mais acima. São histórias de que não vale a pena falar individualmente: embora possam ser lidas isoladamente, a sua força está no conjunto, e só é pena que Bráulio Tavares não tenha levado a ideia mais além, construindo com ela um romance em vez de 99 páginas de um livro de 165. Mas, muito embora a força destes contos esteja no conjunto, isso não diminui cada um deles. São cinco textos muito bem escritos, muito bem concebidos, com o passado de cada sociedade (isto é, as sociedades dos planetas anteriores) muito bem entretecido nas histórias, formando um esboço de um padrão cultural original, que é raro encontrar-se na FC (e não passa de um esboço porque Tavares não levou o potencial da sua ideia até ao fim - principal razão para ter sido desejável um romance. Por outro lado, nunca é tarde para se fazer coisas...)
Em suma, um livro que se não é desprovido de falhas é, sem sombra de dúvida, um dos melhores livros de FC lusófona já editados em Portugal. Para quem quer conhecer a FC luso-brasileira é um livro fundamental, e tem de fazer parte de qualquer biblioteca básica desta forma de literatura.
Muito próximo das cinco estrelas...

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A Espinha Dorsal da Memória

por Bráulio Tavares

Editorial Caminho

Colecção Caminho Ficção Científica, nº 97

1989

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