R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

As Trevas Fantásticas

por David Soares

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 06.07.2007

De vez em quando, no meio editorial português, acontecem coisas destas: surge um livro como que caído do nada, escrito por um nome de que poucas ou nenhumas das pessoas mais ligadas à literatura fantástica portuguesa ouviram falar antes, alguém que nunca passou pelo caminho que é mais habitual para muitos outros: as publicações dirigidas aos fãs, sejam fanzines em versão papel, sejam sites da internet. Por vezes esse acontecimento surge ligado a uma grande editora (e às vezes até a prémios literários e campanhas de marketing relativamente grandes), por vezes surge em editoras mais pequenas. Mas geralmente os efeitos a longo prazo, isto é, o impacto que estas pessoas acabam por ter na literatura fantástica portuguesa (ou lusófona), acabam por ser poucos ou nenhuns. Até porque na maior parte dos casos, aqueles que surgem longe da comunidade dos fãs manifestam uma qualidade bastante deficiente, em geral por deficiente conhecimento do género. E isto independentemente da editora que publica o livro ou da existência, ou não, de prémios associados a ele.
É por isso compreensível que ao encarar um livro novo de um nome novo o leitor experiente de ficção científica e fantástico português tenha aprendido a desconfiar.
Daí que seja provável que As Trevas Fantásticas, ainda para mais editadas por uma pequena editora que, acreditando na capa, parece chamar-se Polvo (mas que uma inspecção mais cuidada revela tratar-se de uma tal "Rui Brito, edições"), não tenham propriamente sido um sucesso de vendas.
Mas David Soares não é um estreante como os outros. Se bem que este seja o seu segundo livro em prosa, depois de um primeiro ainda mais obscuro do que este, David Soares já chegou à literatura convencional trazendo consigo o nome ganho nos círculos da banda desenhada nacional, onde publicou as suas primeiras histórias, e em cujos quadradinhos a sua imaginação se começou a fazer notar.
Em todo o caso, na BD a qualidade do texto propriamente dita não é tão determinante como na literatura. Daí que seja sempre uma incógnita quando um autor dá este tipo de salto. Conseguirá transpor para um meio novo as qualidades que demonstrou no seu meio original? Falhará na tentativa?
Esta tentativa de David Soares consistiu de cinco histórias, às quais se somou um prefácio de José H. de Freitas (para quem não sabe, é o director da Devir portuguesa, ou seja, alguém intimamente ligado à BD) e uma introdução do próprio autor. E é uma boa primeira tentativa.
Os contos de David Soares são contos de horror suportados por personagens ricas e bem construídas. As histórias em si também são em geral bem construídas, com os elementos certos normalmente nos sítios certos. São histórias que revelam um autor com um imenso potencial e um talento apreciável. Mas nesta edição são histórias com um "mas".
Aquilo de que quem lê As Trevas Fantásticas mais sente a falta é de uma revisão profissional. Há gralhas a mais, mas isso não é o pior. Pior que a irritante passarada é o excesso de um experimentalismo linguístico que David Soares por vezes parece não conseguir controlar. Embora dê ideia que a bizarria de algumas figuras de estilo seja um efeito propositado, destinado a aumentar a sensação de estranheza que emerge das histórias, a verdade é que aqui e ali elas bem podiam ter sido recolocadas num plano mais vulgar, dado que se aproximam demasiado de erros de português. Uma revisão profissional também poderia, provavelmente, limitar um experimentalismo menos linguístico e mais estrutural que causa estragos num par de histórias. O caso mais flagrante é o de uma história intensa, repleta de sexo mais ou menos explícito e pessoas mortas, que a páginas tantas é interrompida durante duas páginas por uma... receita de culinária! Se em algumas histórias este tipo de técnicas funciona, nesta decididamente não, e o ritmo e intensidade que são perdidos durante aquelas duas páginas nunca voltam a ser encontrados até ao fim, o que diminui consideravelmente o impacto da história.
Com uma revisão profissional, é provável que estivéssemos perante um livro muito bom. Porque dos textos de David Soares emana uma força que não é frequente encontrar nos escritores portugueses, e porque várias daquelas histórias mereceriam um pouco mais de trabalho do editor.
E por falar em histórias...
A primeira, intitulada O Bezoar, é uma noveleta que gira em torno de cabelo, dos mecanismos da atracção sexual na espécie humana, e de uma entidade monstruosa, o bezoar do título, que se comporta da forma predatória adequada a um conto de terror relativamente clássico. É esta a história interrompida pela receita, e é verdadeiramente uma lástima porque a qualidade do resto da história mereceria um crescendo sem interrupções até ao desenlace.
A segunda, Corações no Verão, é um conto longo, quase noveleta, que tem num rapazinho com problemas cardíacos (não propriamente naturais) e na sua melhor amiga, talvez namorada, os protagonistas. É provavelmente o mais bem conseguido dos cinco contos, com personagens de primeira água e um desfecho surpreendente.
A história seguinte intitula-se Pela Mão de um Vampiro, mais um conto na fronteira da noveleta. Talvez porque o tema dos vampiros já esteja tão batido na literatura de terror (e não só na literatura), talvez porque o tema secundário do escritor solitário seja também um autêntico saco de pancada, talvez porque nada nela seja particularmente inesperado ou surpreendente, a verdade é que esta é a menos interessante das cinco histórias.
A quarta história é um conto um pouco mais curto que os dois anteriores intitulado No Vale, a Igreja. É o segundo ponto alto do volume. Passado na Idade Média, no meio de uma peste, a história segue as andanças de um frade homossexual dotado de argúcia e espírito científico até chegar, ele, o seu amante e todos os sobreviventes de uma aldeia que abandonaram à peste, a um certo vale onde se ergue uma certa igreja. E dizer mais seria revelar aquilo que não pode ser revelado.
O livro encerra com um conto curto, Círculo de Sangue, que tem como protagonista uma mulher que, após vários partos mal sucedidos, deseja ter um filho com cada fibra do seu corpo. Claro que as coisas acabam por não correr propriamente bem, ou não fosse este um livro de terror.
As Trevas Fantásticas são, pois, um livro que poderia ter sido realmente bom, escrito por um autor em quem se podem depositar as melhores esperanças de uma carreira cheia de histórias de qualidade. Talento tem de sobra. Faltar-lhe-á apenas aprender a domá-lo melhor, para o que um bom editor e um bom revisor serão muito importantes. É provável que os consiga. Este livro é dos tais que se houvesse meias estrelas receberia três e meia, mas não há e neste caso concreto, inclina-se mais para cima do que para baixo, daí que...
★★★★

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As Trevas Fantásticas

por David Soares

Rui Brito, Edições

Colecção Polvo, sub-colecção Medo do Escuro, nº 1

2005

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

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