Memórias de um Medium
por João da Rocha
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 11.11.2003
Memórias de um Medium é um romance anacrónico. Não tanto por esta edição vir devolver às livrarias uma obra obscura de um autor obscuro, publicada pela primeira vez em 1900 e escrita, pensa-se, em 1892, mas sim porque se trata de um exemplo típico da literatura do romantismo, cheia das suas qualidades e, principalmente, dos seus defeitos, escrito várias décadas depois do período romântico ter dado lugar ao realismo e naturalismo.
Escrito sob a forma de diário (e daí o subtítulo "Excertos de um diário"), Memórias de um Medium descreve as desventuras de um tal Germano, jovem advogado imbuído das teses racionalistas do fim do século XIX, que se vê atacado por uma catadupa de acontecimentos sobrenaturais que o vão forçar a reavaliar a sua visão do mundo e, mais tarde, acabam por atirá-lo para aquilo a que o autor chamaria, com toda a banalidade inerente, "as asas da morte".
Sim, a prosa é desse género. Hiperadjectivada, repleta de superlativos, aborrecida, chega por vezes a perder de vista os significados na voragem da palavra. A história e os acontecimentos tornam-se, com frequência, confusos, o que nem é inteiramente um defeito — se bem posta em prática, essa confusão pode contribuir para transmitir ao leitor o ambiente subjectivo das personagens. Se bem posta em prática. Infelizmente, não é o caso. Pior: trechos há em que a história do romance e a subjectividade do diário se interrompem, sendo substituídas por autênticos sermões espíritas.
Este último facto e a evolução que é dada à personagem principal (e quase única), desde o cepticismo científico do início do livro à mais completa rendição aos "poderes" do sobrenatural, lá mais para diante, transformam esta obra num autêntico veículo de propaganda anti-racionalista. E acaba por ser pouco mais do que isso, visto que literariamente muito poucos motivos de interesse se conseguem vislumbrar nela.
A crítica poderia ficar-se por aqui, tanto é o vazio do romance propriamente dito, mas há neste livro um detalhe que merece algumas palavras adicionais.
A acreditar na informação prestada por António de Macedo na introdução que escreve para a obra, já habitual nesta sua colecção, esta orientação propagandística não é em nada surpreendente. João da Rocha terá ganho, entre os membros do grupo de escritores em que se integrou (Alberto de Oliveira, António Nobre, Justino de Montalvão, Raul Brandão, D. João de Castro, Antero de Figueiredo, António Correia de Oliveira, Luís de Magalhães, etc.), as alcunhas de "Frei" e "Missionário do Ocultismo", o que leva a supor que lhe era inerente uma certa tendência para o proselitismo. Apesar disso, e ainda segundo Macedo, a primeira edição deste romance incluía um "longo, fastidioso e prolixo prefácio de 42 páginas [...] onde o autor, aceitando embora a «existência doutras inteligências perdidas no Universo», tenta explicar teórica e cientificamente os fenómenos ditos «espíritas», invocando [...] as leis das ciências então conhecidas: o magnetismo, a electricidade, a física, a bioquímica e a psico-fisiologia." (pp 11-12)
Macedo, "bondosamente", decide suprimir nesta reedição tal coisa fastidiosa, substituindo-a por uma introdução escrita por si, bem mais curta (8 páginas), onde dá rédea solta às suas próprias teses anti-científicas e rosacrucianas.
Apesar de ser um facto que sempre que um autor sente a necessidade de explicar as suas obras em elaborados prefácios isso quer dizer que algo falha na própria obra, e apesar de ser no mínimo bizarro que um autor procure dar num prefácio uma interpretação à obra que está em contradição frontal com aquilo que o romance diz de si mesmo, a verdade é que os escritores não são obrigados a ser coerentes, e se João da Rocha decidiu fazê-lo terá tido algum motivo. E assim, é de ética duvidosa que um editor se arrogue ao direito de suprimir um prefácio porque não concorda com a ideologia nele expressa e o acha "fastidioso". Pode-se, inclusive, considerar que tal acto é quase uma traição ao autor que se publica, o que levanta questões quanto às razões que levam à própria publicação.
Assim, nesta edição da Hugin não ficamos a saber o que pensava João da Rocha da obra que produziu. Do seu prefácio ficamos a saber apenas aquilo que Macedo decide dizer-nos. Ficamo-nos, portanto, apenas com a obra e com a introdução do próprio Macedo. Ora, a obra é muito fraca, e a introdução, apesar de ser bastante interessante, é-o mais pelo que omite do que pelo que diz, conseguindo até a proeza de dizer mais coisas sobre António de Macedo do que sobre João da Rocha.
Uma estrela.
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