Cântico à Humanidade
por Ray Bradbury
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 01.04.2004
Uma obra de Bradbury é sempre algo a ler com atenção, mesmo se por vezes o resultado final não corresponde à fama do autor e à qualidade de algumas das suas outras obras. Há que ver que não é possível ser-se sempre genial, todos os artistas têm os seus altos e os seus baixos, e Bradbury, como é óbvio, não é excepção. Mas qualquer coisa fica sempre. Um estilo, uma certa forma de olhar o mundo. E por isso, os trabalhos menores de quem é grande tendem a ser melhores que muitos dos melhores esforços de outros autores.
E, se quando se fala em Bradbury é caso para ficar atento, quando se fala em contos de Bradbury, a atenção devida redobra. É que, sem desprimor para os seus romances, o autor americano chegou ao limite do seu potencial de escritor nos contos, e em particular em algumas pequenas obras-primas que produziu no início da carreira, nos anos 40 e 50.
Ou seja, quando se tem entre mãos um livro chamado Cântico à Humanidade, tradução particularmente desastrada de I Sing the Body Electric, é forçoso que se abra o livro com grande expectativa, visto que se trata de uma colectânea com 28 contos e um poema. E este é precisamente o tipo de texto que mais contribuiu para o nome que Bradbury conquistou dentro do género e fora dele.
Infelizmente, o original deste livro data de 1969, e ele reúne contos que na altura eram recentes, além de outros contos, mais antigos, não incluídos em nenhuma colectânea anterior.
O que a data e a escolha significam é que estes contos, sendo embora muito bem escritos, repletos da poesia típica de Bradbury, não têm aquela centelha de génio presente em obras como Crónicas Marcianas, As Maçãs Douradas do Sol ou, falando de ficção mais longa, Fahrenheit 451.
A temática, tal como na maioria das colectâneas de Bradbury, é variada. Aliás, este livro pode perfeitamente ser encarado como uma montra, um friso, de todos os temas e abordagens que foram mais importantes na obra de Bradbury. Mas a espinha dorsal é a fantasia, ainda que por vezes envolta em roupagens FC. É o caso, por exemplo, de A Criança do Futuro, uma história praticamente surrealista que conta a vida de um casal que tem um filho com a forma de uma pequena pirâmide azul que se vem a verificar ser a forma que adopta no nosso espaço-tempo de quatro dimensões um ser mais evoluído que habita a dimensão seguinte.
Outras vezes, a fantasia surge límpida, mas mais frequentemente aparece tingida com toques de horror, como em A Terrível Conflagração da Mansão, As Mulheres ou O Motel da Galinha Inspirada, só para dar três exemplos.
Há também histórias que evocam até certo ponto as fábulas ballardianas de uma terra vazia, das quais a mais clara é Henrique IX, um conto sobre o último habitante de Inglaterra (e, por isso, rei), abandonada por toda a sua população em busca de outras terras com melhor clima.
E, claro, Marte não podia faltar. Não o Marte que a ciência já começava a desvendar nos anos 60, mas o Marte bradburiano, o Marte das Crónicas Marcianas, aquele planeta sequioso e moribundo, mas de muitas outras formas igualzinho à Terra, que viveu na imaginação dos escritores e leitores de FC da primeira metade do século XX, desde que Percival Lowell cometeu o seu célebre erro de tradução e criou o seu não menos célebre sistema de canais artificiais. Esse Marte que Bradbury encheu de antiquíssimas cidades de cristal. É esse o Marte que está presente em contos como A Cidade Perdida de Marte e A Garrafa Azul.
E depois há a outra vertente, bem conhecida, da obra do autor: os contos não fantásticos, muitas vezes entretecidos de homenagens aos escritores que Bradbury aprecia. Um exemplo deste tipo de história é O Papagaio que Conheceu o Papa, sobre um papagaio, sim, que conheceu alguém, sim, mas não o Papa de Roma; Outro Papa: Ernest Hemingway. Ou também Qualquer Amigo de Nicholas Nickleby é meu Amigo, uma história que Bradbury utiliza para homenagear Charles Dickens. Outro exemplo ainda, uma típica americana, é O Crime Perfeito, sobre alguém que decide matar um fantasma de infância. E fantasma, aqui, é figura de estilo.
Para completar o panorama do tipo de histórias que Bradbury escreveu, faltam apenas os temas católicos. E eles lá estão, em O Messias, ou no poema que encerra o livro, «Christus Apollo».
Em resumo, não é um livro genial, não é um grande livro, não é nada de inovador ou excitante, mas é boa literatura, escrita de uma forma tão suave que alguns leitores poderão achar aborrecida. E pode ser utilizado para obter uma panorâmica geral dos textos de Bradbury, desde que se tenha em conta que os melhores exemplos de cada um dos tipos de história aqui presentes, foram publicados noutros livros, e são, com frequência, muito melhores do que estes.
Quanto à tradução, é competente. Mas para fazer justiça à pureza da prosa de Bradbury é preciso mais do que uma tradução apenas competente. O trabalho de Maria Teresa Costa Pinto Pereira poderia ser considerado bom noutros livros menos exigentes, mas aqui fica aquém do que seria necessário. Não compromete, não estraga muito, mas não é suficiente.
Resumindo: quatro estrelas.
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