Ficção Científica Venezuelana: História e Pré-História
por Jorge De Abreu
tradução de Jorge Candeias
artigo publicado em 25.06.2005

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Bom, aqui estou, se bem que não tenha bem a certeza de como cheguei a este ponto, prestes a contar-vos uma história. Em vez de me pôr a escrever, bem podia ter aproveitado vários sábados deitado no meu quarto, bebendo uma limonada, enquanto assistia a uns quantos capítulos requentados de Star Trek. Teria sido uma agradável perda de tempo, mas tive de abrir a boca. Tudo começou na lista ubik-l: Vladimir Vàsquez mencionou qualquer coisa a respeito da ficção científica venezuelana e eu, impulsivo e sem pensar duas vezes, apressei-me a enviar-lhe um resumo do que conhecia (de tudo o que conhecia). Não sei bem o que aconteceu depois: se José Joaquín (editor da Alfa Eridani) leu a mensagem na lista ou se Vladimir lhe fez chegar algum boato, o certo é que fiquei encarregue de escrever este artigo. Um artigo para a Alfa Eridani sobre a FC venezuelana. Aparentemente, era o único especialista sobre o tema em vários milhões de quilómetros em redor, e assim assumi a impostura o mais dignamente que fui capaz: desatei às cabeçadas na parede.
Recorri à minha experiência pessoal, às bibliotecas e à internet e falhei miseravelmente nas três abordagens. Depois, contactei muitos outros fãs venezuelanos e graças aos que me responderam (sim, porque houve alguns trastes que ficaram calados) lá pude seguir pistas, atar fios e apresentar este artigo que é uma aproximação bastante exacta (se bem que não saiba se suficientemente precisa) à FC venezuelana.
Antes deste artigo, a única iniciativa recompilatória dos feitos da FC venezuelana deve-se a Julio Miranda (1945-1998), o qual, no prólogo a uma antologia de FC editada em 1979, tem o trabalho sinóptico de relatar o que eu defini, com absoluta arbitrariedade, como a pré-história da FC venezuelana.. A breve introdução de Miranda constitui um marco fundamental na documentação da FC venezuelana, a única referência sobre a história do género de antes de 1980. Usei o trabalho de Miranda como muleta para recensear as obras e autores que antecederam, mas que raramente influenciaram, a moderna FC na Venezuela.
Falando em termos relativos, a FC venezuelana teve um dilatado período pré-histórico (embora não tão prolongado como a tradição argentina ou espanhola; o caso venezuelano é sucinto e humilde quando comparado com qualquer destes países), e só na penúltima década do século passado a FC venezuelana atravessou, por fim, o umbral histórico. Actualmente, a Venezuela atravessa uma espécie de alta idade média, sem negar o breve período em que gozou de uma deslumbrante prosperidade helénica, pois em começos da década de oitenta começou a escrever-se com intensidade a história da FC venezuelana.
E no entanto, antes desse ponto de inflexão nos anos oitenta temos a pré-história com o seu mostruário disperso de obras que se podem classificar, com bastante amplitude e bastante imaginação, dentro do género. A pré-história corresponde, de forma difusa, principalmente à literatura de FC escrita nas décadas de sessenta e de setenta. As razões que me levaram a chamá-la pré-história devem-se a não me aperceber, nessas obras e nesses autores, e ao contrário do que opinava Miranda, de um claro movimento ou grupo literário que se dedicasse à FC como género. São obras isoladas de escritores iluminados que por sua própria vontade ou por acidente estocástico bordejaram os temas da FC ou caíram neles em cheio. Foram explosões sem reacção em cadeia, sem solução de continuidade no tempo, geralmente identificados com o género fantástico tanto por leitores e críticos como por eles próprios. Foram pouquíssimos os casos que nesse período foram etiquetados expressamente como FC.
Em rigor, Julio Garmendia (1898-1977), um dos percursores do realismo fantástico na América de língua espanhola com Tienda de Muñecos (1927), inaugura também a ficção científica na Venezuela com o conto La realidad circundante, obra menor que integra a famosa colectânea. Em La realidad circundante, Garmendia postula o uso de um artifício tecnológico para modificar a adaptabilidade humana às variadas e variáveis condições do meio físico, cultural ou social. Onze anos depois do conto de Garmendia, Enrique Bernardo Núñez (1895-1964) publica La Galera de Tiberio, um romance que extrapola a situação da Venezuela de então numa espécie de cronologia do futuro. E depois desse romance, a FC venezuelana guardaria um significativo silêncio por quase três décadas.
Em 1979, o jornal El Diario de Caracas edita a já mencionada antologia Ciencia-Ficción Venezolana, com selecção dos contos a cargo de Julio Miranda, que constitui um mostruário da FC pré-histórica. No seu prólogo, Miranda inclui os contributos à literatura de FC existentes na geração de escritores venezuelanos da década de sessenta. A maioria das obras da antologia constituem a única incursão do autor no género, pois são muito poucos os que tiveram o valor de reincidir. Em geral, os contos são essencialmente fantásticos e o elemento de FC é com frequência incidental. Devido ao carácter escasso da literatura de FC no momento da edição de Ciencia-Ficción Venezolana, esta antologia tem conotações quase exaustivas. A selecção inclui contos como Conspiración en Neo-Ucrania de Francisco de Venanzi (1917-1987), que nunca tinham sido recolhidos num livro.
Dessa camada pré-histórica provêm David Alizo (1941), com o seu livro Quórum (1967), que posteriormente se manteve afastado do género. Alguns dos contos de Quórum: Los convidados, La rebelión de Emilio, etc. Fazem cabotagem à FC. Na sua selecção, Miranda incluiu um autor francamente alheio à FC: José Balza (1939), com o conto Racine en el aeropuerto, da sua antologia Órdenes (1970), o único conto de Balza que tem relação com a FC. Da mesma forma, outros contributos extraordinários para o género que provêm de figuras dedicadas a outros campos literários são Jinetes de luz (Imágenes y Conductos, 1970) de Humberto Mata (1949), Inútil redondo seno (Rostro Desvanecido Memoria, 1973) de Pascual Estrada (1935), e Valdemar Lunes, el inmortal (Volveré con mis Perros, 1975) do obsessivo Ednodio Quintero (1947).
Casos à parte são José Gregorio Porras (1953), com o seu livro de contos curtos Andamiaje (1977), em que inclui inúmeros elementos de FC, e Armando José Sequera (1953), o qual na colectânea Me Pareció que Saltaba por el Espacio como una Hoja Muerta (1977) apresenta 32 contos de FC onde regista cenas da vida de uma comunidade de astronautas larenses (gentílico do estado venezuelano de Lara). No entanto, depois desta primeira imersão, ambos os autores não voltaram a contribuir para a FC. Da mesma forma, a escritora Iliana Gómez (1951) é autora de um trabalho inédito, Las Criaturas de la Ciencia Ficción (1978).
Um caso diferente e único é constituído por Luis Britto García (1940), o qual em duas colectâneas: Rajatabla (1970, Prémio Casa de las Américas) e La Orgía Imaginaria (1983), e um romance: Abrapalabra (1979, também Prémio Casa de las Américas), recorreu insistentemente a temas elementares da FC: desordens temporais, seres extraterrestres e jogos com a realidade. Insistentemente, quase com teimosia, as suas obras sugerem, sussurram os factos, mas não os gritam. Um conto seu, Futuro, foi incluído na antologia Lo Mejor de la Ciencia Ficción Latinoamericana (1981). O próprio Britto García reconheceu durante uma aparição pública que gostaria de ser reconhecido como autor de FC. Foi uma declaração que fez estremecer mais do que uma coluna na intelectualidade venezuelana.
Em 1973 Pedro Berroeta (1914–1997) publica o segundo romance conhecido da FC venezuelana, La Salamandra, onde a história se desenvolve num único e interminável minuto. O terceiro romance de FC venezuelana, La religión de los Hanksis (1989), é publicado na década seguinte e foi escrito por um argentino, Carlos Sabino. Embora tenha sido publicado durante o período histórico, o seu autor é alheio ao género e à corrente principal de escritores e do fandom identificado com a ficção científica, um verdadeiro pária na tradição dos escritores pré-históricos; Carlos Sabino é um sociólogo cujo livro La Metodología de la Investigación deveria ser de leitura obrigatória para todos os cientistas.
A década de oitenta começa com uma nova geração que, ao contrário das gerações anteriores, foi alimentada durante a infância com os clássicos da FC anglo-saxónica e não se deteve a considerar os aspectos aparentemente não intelectuais do género. Esse grupo decidiu organizar-se primeiro e criar depois, se bem que sem dúvida tenham utilizado a organização como um meio de facilitar o processo criador. Foi o nascimento do fandom venezuelano, de baixa estatura e desnutrido, mas totalmente autóctone. O movimento do fandom organizado, à distância de duas décadas, parece simultâneo e concertado, mas na realidade foi caótico e desorganizado. No entanto, até das loucuras se obtêm dividendos: nos dez anos que vão de 1982 a 1992 cimentou-se o que é actualmente a moderna FC venezuelana: basicamente composta por fãs, identificada com os temas do género e com o seu próprio passado literário fantástico e sisudamente intelectual, mas sem pudor de afirmar de viva voz a natureza do seu amor… bem, na realidade com um pouco de afonia.

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