Reflexões sobre as duas versões do filme "Blade Runner" e sobre o livro "Do Androids Dream of Electric Sheep?", de Philip K. Dick
por Alexandre Beluco
artigo publicado em 14.02.2002
republicado em 05.08.2003
O livro surgiu antes, escrito por Philip Kindred Dick, e foi publicado em 1967. Depois veio uma primeira versão do filme, dirigida por Ridley Scott, em 1982, que inicialmente não teve a atenção merecida. No Brasil, o livro foi publicado nos anos 80, na esteira do filme, como O caçador de andróides. Por último veio a segunda e definitiva versão do filme, em 1993, quando a primeira versão já era considerada um cult movie. O livro e as duas versões do filme são semelhantes, ou seria melhor dizer parecidas, mas guardam entre si algumas diferenças que são muito importantes.
O livro conta a história de um policial decadente, Rick Deckard, atuando como caçador de recompensas, um bounty hunter, especializado na captura de andróides evadidos. Pelos sucessos alcançados (mas porque então o clima de decadência?), ele é destacado para capturar seis andróides especiais, de uma classe denominada como Nexus 6, conhecidos como replicantes no filme, dotados de capacidades físicas e mentais bastante superiores às do homem.
A estória apresenta uma característica presente em quase toda a obra do autor. As idéias são sempre geniais, envolvendo drogas, religião, meios de comunicação de massa e dúvidas sobre identidade, mas os livros parecem começar bem, sem contar depois com uma finalização adequada. É como se ele começasse a escrever e lá pelo meio do trabalho perdesse o entusiasmo e concluísse apenas por compromisso. Essa impressão não está presente por exemplo em O homem do castelo alto, que é sua opera prima.
O livro O Caçador de Andróides parece estar centrado na procura por animais sintéticos. Deckard aceitou a tarefa de caçar os Nexus 6 interessado na recompensa e pensando no animal que poderia comprar com ela. Ele almejava adquirir uma cabra. O romance com Rachel mostra-se perfunctório, ao ponto dele inclusive ser casado. É como se os homens em 1992 (quando se passa a estória) quisessem recuperar o tempo perdido, já que não mais existem animais naturais.
O roteiro do filme é fortemente baseado no livro. Há o policial decadente, há os andróides, há a fuga e há o desejo de viver mais. O filme é polêmico ainda hoje. O tema clonagem (se bem que não é isso que acontece na estória) e todas as questões éticas envolvidas são muito atuais, para não dizer que estão na moda. Certamente os primeiros espectadores não conseguiram entender tudo que se queria dizer...
No filme há também o teste de perfil de personalidade de Voigt-Kampff. Um medidor de resposta do sistema nervoso avalia a veracidade da reação das pessoas a questões que só podem ser bem resolvidas com base em experiências pessoais. O que você faria se seu cônjuge lhe traísse sobre a cama que compartilham? O que você faria se seu filho trouxesse para casa um animal machucado? As respostas autênticas vêm da experiência acumulada com o passar dos anos, que é justamente o que os andros não têm, já que suas memórias consistem em implantes.
O filme é bastante lembrado ainda pelo clima noir e pelas imagens de trânsito com os hovercars. As cidades parecem caminhar para aquelas imagens claustrofóbicas, noturnas e úmidas, com gigantescos outdoors e anúncios de Coca Cola e de fast foods japoneses. A Terra configura-se como um local difícil de aturar, onde permanecem os seres humanos menos dotados, incapazes de viver no espaço.
Mas é preciso dizer que o filme toma um enfoque diferente do livro, ao não prestigiar tanto a ambição por animais sintéticos e dar maior ênfase ao gênero humano. O filme se preocupa com os replicantes e com suas ansiedades e desilusões. No filme, um replicante volta ao apartamento que ocupava para procurar por fotos, e morre por isso, já que encontra Deckard, tenta se livrar dele mas acaba morto por Rachel (aliás, não teria ela o salvado já sabendo que seriam iguais?).
A segunda versão apresenta diferenças marcantes em relação à primeira. Foram alterados cerca de cinco a dez minutos. Grande parte desses acréscimos envolve cenas de trânsito com carros voadores, sem qualquer importância no desfecho. Mas dessas alterações, uma é fundamental, mesmo sendo bastante curta. E não há a narração em off pela personagem de Harrison Ford.
A grande diferença entre as duas versões aparece mesmo em duas cenas: uma acrescentada e outra retirada. Na primeira, acrescentada, quando Rachel aceita acompanhar Rick até seu apartamento, depois de tê-lo salvado em um embate com outro replicante, ele se deita no sofá com um copo de uísque. E sonha com um unicórnio. A segunda cena, retirada, no final, quando Rachel e Rick fogem em um carro voador, e ele conta que ela é especial, pois não tem um prazo de validade.
Essas duas cenas, mais a cena anterior a essa, em que Rick busca Rachel em seu apartamento, e antes de entrar no elevador encontra um origami de um unicórnio, conferem a essa segunda versão uma dimensão que supera a primeira em profundidade e em transcendência, e que a diferencia do livro em objetivos. Apesar de sonhos aparecerem no livro já no nome, questionando sobre o conteúdo dos sonhos de andróides. Talvez mesmo fazendo referência ao seu inconsciente.
O filme todo transcorre em um ritmo forte, sempre noturno e úmido, com pessoas que não chegam a constituir exemplos a serem seguidos. Os dois últimos replicantes, Roy e Pris, o portador de mal de Matusalém, J. F. Sebastian, o geneticista empreendedor, Tyrrel, o andro que é melhor que os outros, Rachel, e o próprio removedor, Deckard.
O sonho com um unicórnio e o origami deixado pelo colega fecham o filme dando uma sensação que é tão impactante quanto um choque de um automóvel a 200km/h em um paredão. É como se o filme nos fizesse flutuar por breves instantes, retirando nossas referências de cultura, de passado, de profissão, de amizades e de relacionamentos, para nos mostrar como talvez esses apegos cotidianos não merecem a importância e a preocupação que despendemos, para depois nos soltar ao chão novamente, para nos encontrarmos perdidos entre referências embaralhadas.
O clima de pessimismo do filme, um pessimismo visceral sobre o futuro e sobre a raça humana, só é amenizado pela belíssima trilha sonora composta pelo grego Vangelis. O solo de piano que Rachel dedilha quando descobre essa habilidade e enquanto Deckard sonha com um unicórnio, e a faixa que acompanha os créditos no final, logo depois da porta do elevador em que Rachel e Deckard entraram se fechar, são inesquecíveis.
Enfim, o homem conseguira criar homens à sua imagem e semelhança, como aparecia nos cartazes de lançamento de filme, agora teria que arcar com as conseqüências, o que poderia exigir alguém à altura, fisica e mentalmente. Mas se o encarregado de resolver a situação pode (ou precisa) ser um replicante, quantos mais não podem ser? O incrível é que o filme vai muito além dessa pergunta tão simples e tão óbvia.
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