R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Steaks Barbares

por João Seixas

conto publicado em 06.09.2001

republicado em 29.06.2005

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Sente-se, por favor. Já que se entregou a essa empresa de me procurar por todo o mundo, o mínimo que posso fazer é oferecer-lhe a minha hospitalidade. Embora não aprove essa sua louca demanda, é impossível deixar de me sentir lisonjeado.
Ao mesmo tempo, penso eu, ajudar-me-á a acrescentar mais uma nota a uma pergunta que, no meu espírito, permanece por responder: o que é que leva um homem a abandonar o seu lar, a sua vida e aqueles a quem pertence, a fim de calcorrear o mundo como um nómada urbano, um náufrago das grandes cidades?
Também se coloca essa questão, não é assim? Penso que é inevitável. E compraz-me saber que também nisso somos semelhantes. Talvez os últimos de uma espécie rara, como aquelas que alguns animais não cessam de perseguir.
Acredito, porém, que me poderá dar uma resposta, ainda que necessariamente incompleta, visto que o seu objectivo era bem definido. Encontrar-me! E não é de ânimo leve que uma pessoa da sua responsabilidade - posso vê-lo pela forma como se senta: autoritária, porém afável; amável, no entanto habituado a ser obedecido - atravessa uma selva como esta, onde as constantes cortinas de mosquitos não são a maior das ameaças. É, portanto, um homem decidido e precavido.
E então porquê... Porquê esta jornada?
Oh, desculpe se me rio. Mas surpreende-me e ao mesmo tempo deixa-me embevecido. Veio então para me ouvir, para ouvir a minha história!
Fosse outra pessoa e mandá-lo-ia de volta para a selva. Os seus olhos, porém, dizem-me que fala a sério. Isso intriga-me. Que pode ter de interessante a minha história?
Como!? Maravilha-me com as suas palavras. Tornei-me, então, uma lenda no continente? Um mito que convém ser rapidamente dissipado; não queremos uma nova religião, não é verdade? Brinco consigo. Não me leve a mal. Não é todos os dias que posso falar com um compatriota, e ainda menos com alguém que eu antevejo como um igual. E não me sirvo do termo no seu sentido moral ou social, não. Refiro-me a um igual num plano separado das vicissitudes terrenas, deste velho chão que nos atrai de uma tal forma, que no final nos engolfa como uma mãe carinhosa. Está surpreso? É natural. Mais tarde, porém, me compreenderá. Isto se o meu juízo acerca da sua pessoa estiver correcto.
Quer então ouvir a minha história? Terei todo o prazer em lha contar, visto não estar em presença de um pobre de espírito, de um fraco que vacilaria às primeiras palavras.
Concorda comigo quando afirmo que não há nada pior que um pobre de espírito. Essas criaturas incapazes de sustentar a sua personalidade em alicerces estruturados. São como pequenas velas num mar revolto. Pautam-se pelos ventos da conveniência. Mas deixemos estas diatribes.
É pela minha história que os seus ouvidos anseiam.
Deixe-me, porém, oferecer-lhe de comer. Não seria um bom anfitrião se o não fizesse. O ar quente da selva abre o apetite, bem o sei. Acredite, já cheguei a ver uma boa-constrictor a comer-se a ela própria, num anel escamoso de estranha ironia.
Comer é uma arte, e como prólogo à minha história, permita que lhe diga que é a mais nobre actividade do homem. É verdadeiramente aquela que o separa dos outros animais. Talvez ache exagerado que lhe diga que o prestígio de um imperador se mede pelo tamanho da sua mesa e da variedade dos pratos que ela comporta. Mas será desnecessário dizer-lhe que o sucesso de muitas empreitadas diplomáticas se deve à arte de servir os mais requintados pratos.
Também por isso, a elevação de um espírito se mede por aquilo que ele come. Não se deixe iludir pela estatura económica de alguém. Conheci donos de grandes fortunas que comiam como campesinos, e lavradores que comiam como iluminados. Sem dúvida, estes elevam-se, pois o espírito precisa de ser alimentado, nutrido.
Vejo que não me leva a sério e que as minhas palavras fazem vacilar a imagem que tinha construído de mim.
Rapidamente se transforma um mito num lunático, não é assim? Um Kurtz transforma-se rapidamente num barão de Munschausen, tal como um messias se transforma num filósofo economista. Se quer conhecer a minha história, porém, terá que aceitar esta ideia, pois o que me levou a este ostracismo auto-imposto foi precisamente aquilo que como.
Mas não nos precipitemos. Quero, não obstante, que saiba de antemão que me encontro aqui devido à minha especial situação face à humanidade. Pode dizer que foi a minha conduta que me trouxe aqui, a minha incapacidade de voltar a enfrentar os meus semelhantes. Sorri! Oh!, mas não pense que sou alguma espécie de juíz-penitente como advogava o personagem de Camus. Não, nada disso. Na realidade, inclinar-me-ia mais para a posição de juiz que para a de penitente. Na minha grande auto-estima sou hipocritamente modesto. Não desejo ser filósofo. Não pretendo espalhar as minhas ideias pelas massas. Apenas àqueles poucos capazes de me compreender.
Ah!, mas eis que chega a comida. Sente-se já o seu perfumado aroma no ar. Respire fundo. Leve-o às suas entranhas. Eis um perfume verdadeiramente elevante.
Tem fome? Óptimo. Comê-lo-á sem ser por condescendência cortês, degustá-lo-á como um verdadeiro gourmet. Devo preveni-lo que estranhará inicialmente o paladar. É, não obstante, um prato cuidadosamente confeccionado. Provará uma carne como, posso prometer-lho, muito poucos o fizeram. Oh, mas para quê maçá-lo? Eis que o tem à sua frente. Essas finas fatias de carne rosada. Filet Mignon? Não, não. É uma iguaria superior. Vá, prove!
Não se ofenda, sorrio da sua expressão porque me revejo nela, quando estive no seu lugar. Isso recorda-me que veio aqui para ouvir a minha história.
Pois bem. Se veio à minha procura, presumo que conhece algo sobre mim. Espero não parecer pretensioso. A verdade é que cheguei a escrever alguns livros. Nada de importante, porém: dois sobre gastronomia e uns tantos de culinária. Tudo muito convencional, não duvide. Nada de best-sellers. Apenas uma ocupação que me permitia explorar a minha vocação.
A verdade é que, desde criança, sou um aficcionado pela comida. Sim, sim, como Dalí, nota bem, mas infelizmente não tão genial. Mas também não era essa a minha pretensão. Não pretendia ser conhecido, por isso me surpreende este súbito interesse pela minha pessoa.
Acredite ou não, o maior desejo da minha vida era muito simples: comer! Oh sim, comer! Comer o mais possível. Atravessar a vida como uma barriga bem nutrida. Ser, na arte gastronómica, o que Dalí é na pintura. Oh, o ansiado apogeu: ter provado todos os pratos existentes. E olhe que provei alguns bem estranhos. Parece incompreensível, não é assim? Mas é verdade. Passo seis horas por dia a comer. No entanto, sou magro. É endémico.
Mas disperso-me de novo. Maço-o? Ainda bem. Vou então continuar. Espero que esteja a gostar da comida...
Uma textura estranha, a da carne? Um pouco, sim... Para conseguir o seu melhor paladar necessita de alguns molhos polinésios. Recomendo o dessa segunda tigela à sua esquerda. Sim, cor de salmão.
Mas voltemos à minha história.
A minha saga - pareço imodesto? - bem, a minha aventura se assim o prefere, começou quando preparava o meu terceiro livro. Mencionei dois. Não lhe menti. Nunca publiquei o terceiro. Seria verdadeiramente a minha "Condição Humana", Malraux que me perdoe; não tenho o seu engenho literário. Mas o mundo ainda não está preparado para ele. Penso que nunca ouviu falar de um livro de gastronomia subversivo, não é verdade?
Enfim. Na altura era um frequentador assíduo de um pequeno restaurante na ilha da Madeira. Pertencia a um simpático alemão e estava situado numa magnífica encosta esmeralda que mergulhava no mar azul, sussurrante. Ali, sob o céu limpo de nuvens, satisfazia o apetite, enquanto lia e escrevinhava algumas linhas de rascunho.

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