R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Se os Olhos Pudessem Matar...

por Daniel Alvarez

conto publicado em 24.09.2001

republicado em 31.01.2004

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Até há instantes impassíveis atrás do escudo transparente, os jkleii acabaram de tombar ao solo e agora se debatem, contorcendo patas, braços e antenas num ritmo frenético, vítimas aparentes de uma agonia atroz. Agora, alguns jazem inertes sobre o piso, com um fluido amarelo viscoso supurando em fluxos lentos de seus orifícios cranianos. A plumagem dos poucos prisioneiros ainda conscientes tremula em desalinho, expressando primeiro susto e dor, e pouco depois o medo mais abjeto.
Os uivos lancinantes dos moribundos filtram-se através do escudo defletor. A pelagem de meu dorso se eriça contra minha vontade.
Por um segundo chego a pensar que os humanos trouxeram um refrator de campo energético oculto em seus trajes. Mas, não... Ao que eu saiba, um dispositivo desse tipo é grande demais para se escondido dessa forma.
— Pelo focinho da Grande Deusa! — A diretora do presídio enxuga o focinho úmido de medo. — O quê está exterminando meus prisioneiros?
"É o adolescente humano!" — Informa meu módulo de processamento.
— Não pode ser! Como é possível? — Indago, incrédula.
Meu implante permanece mudo.
Alguns jkleii mais resistentes ainda gemem e urram em seu próprio idioma.
Os sensores automáticos do presídio emitem um sinal de alarme num tom agudo insuportável.
"Alguns jkleii pedem clemência..." — Meu implante vacila, como se não acreditasse no que me revela.
Os últimos invasores alienígenas começam a tombar.
Não consigo controlar o tremor que me acomete. Sinto os pelos da nuca se arrepiarem. Não há explicação para esta chacina macabra.
—oOo—
— Basta! — Magnus ordena, dirigindo-se ao jovem neomorfo. E voltando-se para mim, acrescenta no tom de quem pede desculpas a uma cria bem nova. — Precisamos poupar alguns prisioneiros, se queremos que os sobreviventes contem o que vivenciaram hoje aos líderes da Frota Jkley.
Quase todos os jkleii estão caídos no piso de concreplástico. Alguns se contorcem fracamente em espasmos involuntários, mas a maioria jaz inerte.
"Vinte e três alienígenas não apresentam sinais vitais." — O módulo sussurra num tom assustado que eu ainda não conhecia. — "Os sensores do sistema carcerário informam que foram vítimas de hemorragias cerebrais maciças e fulminantes. Não dispomos do conhecimento necessário sobre a biologia jkley para reconstituir os danos nos sistemas nervosos dos prisioneiros..."
Mais de vinte inimigos mortos, num piscar de olhos, sem qualquer razão aparente...
— O quê aconteceu? — Pergunto num latim trêmulo.
— Esta é a arma que queríamos mostrar. — O conselheiro explica com semblante jovial, como se falasse da coisa mais prosaica da periferia galáctica. — Uma pequena demonstração dos poderes empático-emissivos de Mucius.
— Fantástico... — Suspiro entre dentes. Observo que um filete solitário de suor escorre do interior do volumoso capacete do jovem. Os olhos dele brilham intensos. Perdeu por completo aquele ar indolente de uns meros dois minutos atrás. — Mas o que aconteceu exatamente?
Quem explica é a major-cientista:
— Sempre existiram uns poucos humanos com um talento raro para interpretar e expressar sensações, sentimentos e emoções tipicamente humanos numa linguagem alienígena. Alguns geneticistas se perguntaram há séculos se esta característica, este talento, poderia ser estimulado através de alterações no genoma humano. Outros, mais ousados, imaginaram se não seria possível empregar tal poder como arma.
Os humanos e seus sentimentos atávicos...
Não vislumbro onde Maria pretende chegar.
A humana continua a preleção:
— Houve dúvidas se a capacidade de transmitir emoções inteligíveis para outro cérebro poderia ser de fato utilizada como arma. Além disso, havia toda uma miríade de questões éticas envolvidas. Para não falar no medo de que, mesmo se as experiências tivessem êxito, esses novos indivíduos não pudessem ser treinados ou controlados. Com a chegada dos jkleii e a compreensão da ameaça que a Segunda Invasão representava, todos esses escrúpulos e muitos outros foram postos de lado. Debelada a ameaça jkley, voltaremos às questões éticas e morais.
Fito a humana de boca aberta e língua pendente de espanto.
Tremo em pensar no que a humanidade foi capaz de fazer, uma vez decidida pôr fim à invasão.
Somente os humanos teriam coragem de vasculhar as funções emocionais primitivas de seus próprios cérebros em busca de ferramentas para derrotar o inimigo. Somente eles conseguiriam transformar em armas indefensáveis justo os atavismos pelos quais são acusados por várias espécies alienígenas, aliadas e adversárias, de serem pouco mais evoluídos que animais espertos.
— Um dos projetos mais ousados dessa ordem foi desarquivado e tomou forma. — Maria Morgan me lança um olhar perscrutador para verificar se estou seguindo a explicação. — Centenas de milhares de embriões humanos foram submetidos a alterações em seu programa genético para produzir indivíduos como esse jovem que vocês têm diante de si.
— E o que nós temos diante de nós? — Disparo na primeira pausa que ela me concede. — Como foi exatamente que ele conseguiu atingir os jkleii?
— Eu pensei no ódio que sentimos por eles terem destruído tantos planetas habitados. — Então Mucius Cisalpinus sabe falar! Mas os lábios pálidos engastados nessa boca vestigial permanecem cerrados. Sua voz emerge artificial de um aparelho preso sobre o pescoço fino e dobrado para trás em forma de "V". — No ódio por terem ceifado tantas e tantas vidas humanas e alienígenas sem que nada pudéssemos fazer para detê-los. Sondei suas mentes com auxílio do capacete, analisando seus fluxos mentais e emocionais, para aprender como exprimir meu ódio de uma forma que eles pudessem compreender... e sentir.
Fito o neomorfo com curiosidade. De repente, percebo que seu aspecto hediondo já não é aquilo que mais me assusta nele.
Como os humanos tiveram coragem de transformar seus próprios filhos em monstros?
Controlo o tremor das orelhas com dificuldade. Não resisto à vontade de perguntar:
— Você fez com que eles sentissem o ódio que você nutre por eles... É isto?
— Exato.
— E porque eles sofreram tanto com isto?
— Meu capacete sintonizou a emoção para que os cérebros deles pudessem interpretar e então provocou um efeito de ressonância, fazendo com que a amplitude do ódio se elevasse centenas de vezes.
— Mas de onde veio tanta energia? Quase nada atravessou o escudo energético...
— É verdade. O efeito de ressonância foi produzido com a energia dos organismos dos próprios jkleii. Apenas programei seus cérebros e sistemas nervosos para que eles produzissem a sobrecarga.
— Incrível! — Agora não tenho mais dúvidas. Os humanos criaram monstros. Não admira que mesmo ante à ameaça da Segunda Invasão, hesitassem tanto antes de fazê-lo. — Esta experiência... a morte dos jkleii... já havia sido efetuada antes?
— Cinco vezes. Mas nunca fora do âmbito da Federação. — Odysseus Magnus explica.
— Para mim, esta foi a primeira vez. — Mucius declara, orgulhoso.
Giro as orelhas num gesto de alegria forçada.
Não há por acaso um velho ditado humano que afirma que "a primeira vez é inesquecível"?
— Vocês já dispõem desse poder há mais de trinta anos. Por quê só decidiram nos contar agora?
— Mucius Cisalpinus faz parte da primeira leva de quinze mil humanos capazes de transmitir emoções. O treinamento deles e o desenvolvimento da aparelhagem abrigada no capacete-transceptor só foram concluídos há três meses. Disputávamos uma corrida contra o tempo. Não duvide que aceleramos o máximo possível o desenvolvimento dessas crianças e o treinamento delas.
Não nutro dúvidas a respeito. Afinal, a cada ano que se passou, mesmo nessa fase que os jkleii afirmam ser uma espécie de compasso de espera, os invasores varreram dezenas de sistemas estelares. Muitos desses sistemas haviam sido habitados. E em vários deles, planetas e hábitats orbitais não puderam ser evacuados a tempo...
"Precisaríamos de pelo menos 30 milhões de humanos irradiadores de emoções para destruir toda a frota invasora dos jkleii." — Meu módulo de processamento afirma com rigor implacável. Não sei de onde ele tirou essa cifra estapafúrdia... — "Eles afirmam só possuir 15 mil..."
Coço o focinho, confusa.
— Qual é o raio de ação desse... poder?

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Se os Olhos Pudessem Matar...

Daniel Alvarez escreveu:

 

A Filha do Predador

Writers (Brasil)

1999

(leia a crítica de Jorge Candeias)