R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Se os Olhos Pudessem Matar...

por Daniel Alvarez

conto publicado em 24.09.2001

republicado em 31.01.2004

Página: 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7

"If looks could kill,
You'd be lying on the floor!"
[Heart]

Observo o invulnerável da Federação riscar de prata o verde escuro do céu vespertino de Bollrz, o mais externo dos mundos oxigenados de Caril.
Os sistemas automáticos da belonave conduzem a manobra de aterragem no único astroporto planetário deste mundo árido desprovido de oceanos.
Tantas jovens membros promissoras do Partido da Aliança dispostas e ávidas pela honra de recepcionar os emissários humanos recém-chegados e logo eu, hierarca da oposição que encaro com pouca simpatia nossa amizade com esse povo, fui escolhida para a missão.
Como de hábito, usamos Bollrz mais uma vez como porta de entrada dos humanos em Caril. Nossos aliados consideram confortável a gravitação do planeta, 20% inferior a de Norgall. Além disso, apreciam a claridade suave dos céus esverdeados de Bollrz, tão pouco brilhantes quanto os céus azuis da Terra num dia ensolarado, lembrando sempre que o Sol visto da Terra parece consideravelmente mais pálido do que a Caril que fulgura nos céus bela nossa bela e amada Norgall.
Mesmo a dois quilômetros de altitude, o invulnerável humano revela-se visivelmente maior que nossos couraçados. "A escala dos invulneráveis é 50% maior", informa meu implante de memória.
De qualquer modo, os dois tipos de nave compartilham o mesmo design elipsoidal básico — o que não é nenhuma surpresa, visto que os humanos nos ensinaram a construir naves estelares, cujos projetos eles próprios apreenderam a partir dos destroços imperiais, bem nos primórdios da Guerra Ry'whax-Homeotérmica.
Quando comparado com um mercante estelar, o invulnerável não parece lá grande coisa com seus parcos 300 metros de diâmetro maior. Em termos de belonaves, contudo, trata-se de um colosso. Além disso, é auto-suficiente, dotado de poder-de-fogo quase indescritível e capaz de aterrar nas superfícies planetárias de relevo mais escarpado e irregular.
A belonave estelar desativa os jatos de frenagem e passa a flutuar inerte, com seu pólo inferior a poucos metros do piso de concreplástico do astroporto.
Por infeliz capricho da política carily, a Alta-Hierarquia da União ungiu-me com o dever de receber o Conselheiro Odysseus Magnus e sua comitiva. Oficialmente a razão de minha escolha deve-se ao fato de eu ser a hierarca mais jovem disponível em Caril capaz de articular o latim sem o auxílio de implantes-tradutores. Imagino que o fato de eu ser uma xenóloga especializada em conduta e costumes humanos também tenha pesado na escolha.
Logo eu, que por direito ainda devia estar entocada, cuidando da nova ninhada e usufruindo dos prazeres do harém, após da ausência nos meses finais da gestação, e não recepcionando humanos... Tenho certeza que minhas primogênitas estão cuidando bem das irmãzinhas. O que me preocupa é que deixei os machos de meu harém aos cuidados dúbios daquelas meninas lascivas...
É melhor nem pensar nas coisas que não podemos mudar.
Devo receber o emissário plenipotenciário da Federação Humana e acompanhá-lo em sua visita a Caril, que nossos aliados mais fiéis ainda insistem em chamar de "Sistema Duplo de Capella".
Segundo instruções recebidas, devo conduzir o conselheiro e seu grupo a qualquer parte de Caril que o humano julgue necessário para realizar aquilo que o Conselho Científico da Federação designou enigmaticamente como "pequena demonstração de caráter prático".
Surgiram, não sei bem de onde, alguns boatos e insinuações veladas de que a humanidade teria desenvolvido uma arma definitiva para estancar a Segunda Invasão. Embora não me julgue especialista em tecnologia bélica, considero de todo improvável que os humanos tenham aperfeiçoado uma nova arma ofensiva capaz de destruir os Peregrinos sem que nossa inteligência tenha ouvido falar algo a respeito.
Meu módulo de processamento informa que o invulnerável acaba de desativar os compensadores de inércia, sustentando-se agora apenas sobre os grossos pilares pneumáticos recém-emersos de seu casco de aparência fluida.
— Quantos humanos irão desembarcar? — Indago a meus módulos e implantes auxiliares.
Meu link interno conecta-se ao sistema de informação do astroporto e este comunica-se com o programa-mestre do invulnerável. Dois segundos mais tarde, obtenho a resposta: "Três humanos."
Estranho... Isto quer dizer que a tripulação da nave não gozará sua licença tradicional de alguns dias nas instalações militares anexas ao astroporto.
Esfrego o focinho nas costas da pata esquerda, simulando indiferença. Ingresso no grande flutuador automático que me aguarda de porta aberta. Acomodo-me num dos dez assentos de estofamento macio, mais ao gosto dos humanos que ao nosso. A porta fecha com um chiado quase imperceptível e o flutuador acelera em direção à escotilha inferior do invulnerável.
O casco abaulado da belonave reflete em tons azulados o brilho amarelo esmaecido e distante de Caril, uma fração ínfima do fulgor ígneo com que nosso primário se exibe radiante nos céus de Norgall.
Da janela de plástico do flutuador, não consigo enxergar as marcações das comportas dos canhões de transição. Contudo, não preciso que meus processadores implantados me digam onde elas se situam.
Do hemisfério norte do invulnerável projeta-se a reprodução gigantesca do Cordeiro — um vertebrado homeotérmico quadrúpede nativo da própria Terra — ícone holográfico há muito adotado por nossos aliados e que, hoje em dia, mesmo as espécies alienígenas recém-contatadas associam facilmente à presença da humanidade em seus domínios.
Ah, os humanos e suas emoções atávicas...
Não há registro de outra espécie em toda a Periferia que, deixando-se governar tanto pelos sentimentos e emoções quanto os humanos, tenha chegado tão longe.
Segundo consta a lenda, o comandante daquela primeira flotilha de avassalamento do Império Ry´whax a ingressar no Sistema Solar, com o intuito de se jactar com os conhecimentos recém-adquiridos junto aos futuros vassalos, teria afirmado que "seria tão fácil para suas belonaves aniquilar a humanidade quanto para um lobo faminto devorar um cordeiro indefeso..."
O comandante ry'whax teve motivos convincentes para pensar daquela forma. Afinal, sua flotilha dispunha de recursos bélicos e tecnologia inimagináveis para os humanos da época do primeiro contato com o Império.
E, no entanto, a humanidade destruiu aquela primeira flotilha de avassalamento e absorveu como uma esponja a matriz tecnológica do inimigo, encontrada nos escombros do couraçado e dos cruzadores sinistrados.
Depois desse primeiro engajamento da longa Guerra Ry'whax-Homeotérmica, batizado "Batalha Prima" pelos humanos, a Federação recém-estabelecida teria escolhido o cordeiro sobre um campo estrelado como símbolo máximo de sua espécie.
—oOo—
Ao contrário da maioria das carilybits, não morro de simpatia por nossos fiéis amigos humanos.
Eles foram aliados formidáveis durante a Guerra, não há dúvida. Também não me ressinto nem um pouco — ao arrepio da ortodoxia independente tão em voga entre os historiadores especializados em nossa fase pré-contato — com a maneira pela qual os humanos nos influenciaram por ocasião do primeiro contato. A atitude deles foi honesta e bem intencionada; o que é bem mais do que podemos afirmar em relação à política da nobreza indolente-comercial ry'whax. E, o mais importante, os humanos tinham de fato razão: não havia neutralidade possível para a cariléia entre as forças antagônicas da pequenina Federação Humana e do Eterno Império Ry'whax. Ou bem nos tornávamos vassalos privilegiados, ou nos uníamos à cruzada gloriosa, mas arriscadíssima, proposta pela humanidade. Creio piamente que nossos antepassados tomaram a decisão acertada ao optar pelo ingresso na Aliança de Extermínio.
Meus motivos de ressentimento são outros. Motivos mais recentes e relacionados à política externa humana do Pós-Guerra.
Como filiada ao Partido Independente, até bem pouco tempo atrás defendi um afastamento maior da política expansionista da Federação. Assumi a postura oficial do partido, até por julgar que, com a Guerra finda há quase um milênio, já não havia mais justificativa para mantermos o vasto aparato militar de nossa Armada Conjunta em patrulhas constantes pelas regiões da Periferia habitadas por civilizações-membros da Associação Livre.
Com população e Armada bem maiores do que as nossas, mais sistemas estelares colonizados e, sobretudo, pelo fato de nos terem facultado a tecnologia cósmica ry'whax, os humanos sempre nos viram como uma espécie de irmãos caçulas, que eles se propõem conduzir e orientar, mesmo nos dias de hoje, tanto tempo após a ameaça ry'whax ter sido debelada.

Página: 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7

Gostou deste texto? Ajude-nos a oferecer-lhe mais!

 

Se os Olhos Pudessem Matar...

Daniel Alvarez escreveu:

 

A Filha do Predador

Writers (Brasil)

1999

(leia a crítica de Jorge Candeias)