R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

No Coração do Deserto

por Luís Filipe Silva

conto curto publicado em 15.11.2001

republicado em 30.04.2005

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Os europeus tinham emudecido quando passámos pelos poços de petróleo abandonados. A visão das gigantescas estruturas de metal, que derretiam numa morte lenta sob o sol do meio-dia, era impressionante, e os europeus haviam contemplado durante os primeiros instantes os dinossauros de ferrugem, transfigurados, para em seguida, como se por assentimento colectivo, desviarem a vista e contemplarem, absortamente, pontos vagos no horizonte, de olhos escondidos por detrás dos óculos escuros. Não tinham voltado a falar, embora estivessemos já muito longe de Hassi Massaoud. Eu próprio também não forcei a conversa. Queria que o peso daquele testemunho da carência do meu país, que um dia havia sido uma fonte de riqueza e poder, impregnasse os seus espíritos, e sentissem que nem eles, os representantes da maior besta económica mundial, estavam a salvo de um percalço da natureza.
A carrinha avançava diligentemente pela estrada, de retorno ao norte. Em breve, encontraríamos a base militar, onde os europeus tomariam um transporte para a capital. O oleoduto perdera-se já entre as colinas e as dunas, e o motor eléctrico protestava no pavimento velho e coberto de areia, que não era usado há quase uma década. Os europeus encaravam, incomodados, o caminho, deparando com uma paisagem monótona, repetitiva, de brilho intenso e sem pontos de referência definidos. O localizador do carro indicava continuamente as coordenadas geográficas da nossa posição, alimentado por satélite; até certo ponto, era o único factor que assegurava que nos movíamos. Não que eu precisasse da segurança — este era o meu país, conhecia-lhe os truques, os truques do deserto. Se havia perturbação no meu espírito, era por descobrir lagos de areia e troncos de pedras onde, outrora, os meus olhos haviam presenciado o azul de espelho da água, e o verde das folhas das palmeiras.
Os europeus não tinham consciência da mudança. Para eles, só existia o pó intrusivo, que entrava pelas janelas abertas e se colava às suas camisas brancas e puras como a neve. E o calor. O inimigo invisível, que eles tentavam derrotar com vigorosos abanões dos chapéus azuis das vinte e uma estrelas amarelas, de encontro ao rosto, com resultados persistentemente infrutíferos. Soprava uma brisa suave, mas ela própria era tórrida, abafada, e constrangia, ao invés de aliviar. O francês, que detinha a fisionomia mais encorpada, deitava a cabeça para trás, expondo a garganta barbeada, por onde corriam grossas lágrimas de suor, como um rio impressionante cuja foz era a camisa. Desviei os olhos, reprimindo um sorriso. Estes eram os pretensos líderes da economia, o bastião da cultura actual; mas até eles se vergavam perante o deserto.
O calor aumentava, e nós aproximávamo-nos do destino — não o da base militar, mas outro. Encarei descontraidamente o localizador do painel, aguardando que nele surgisse o valor que me fora indicado; quando o vi surgir, olhei de soslaio para o espelho retrovisor. As pupilas cor de azeitona do condutor aguardavam-me ansiosamente. Desviei os olhos, antes que os europeus percebessem.
O veículo tossiu e abrandou, dando solavancos. Alguns dos europeus protestaram audivelmente, perdendo por instantes a postura diplomática. O motorista tentou avançar, mas o carro estremeceu de novo, acabando por se deter junto a uma duna.
Inclinei-me para a frente e coloquei uma pergunta ao motorista. Os europeus escutaram, preocupados, a nossa troca de palavras.
— Meus senhores — disse, voltando-me para eles —, lamento informar que o veículo se encontra inoperacional. Teremos de contactar com a base e pedir auxílio. Peço desculpas por este incidente, mas são coisas que acontecem. Foi-nos dado um veículo aparentemente defeituoso.
O inglês olhou, irritado, pela janela, reprimindo visivelmente um comentário mordaz. Os outros soltaram murmúrios de insatisfação. Apenas o eslavo se preocupou em perguntar quanto tempo demoraria a ajuda.
— Se enviarem prontamente um helicóptero, diria que cerca de meia hora — respondi.
— Faça o favor de dizer ao motorista que os contacte imediatamente pelo rádio — ripostou o francês. — Espero que esse não esteja também avariado.
Deixei que a minha ausência de reacção ao comentário servisse de reprimenda e voltei a dirigir-me ao motorista. O europeu pareceu acalmar-se.
— Estamos com sorte — indiquei aos diplomatas, enquanto o motorista seguia as minhas ordens. — Fui informado de que estamos próximos de uma aldeia berbere. Poderemos descansar e refrescar-nos, enquanto esperamos.
Era a melhor notícia que aqueles ouvidos poderiam escutar. Com redobrado ânimo, saíram da carrinha, percebendo, só então, que a aldeia ainda distava, e que teriam de percorrer a estrada a pé. Debaixo do sol.
Avançámos, lentamente. Notei o modo acelerado como eles perdiam a água do corpo, que, ao surgir à pele, se evaporava imediatamente. Não era de admirar que se sentissem exaustos, não estavam minimamente preparados para o deserto. Decidi apressar-me, antes que acontecesse algo de grave.
Fui conversando com eles enquanto prosseguíamos. Era uma das situações de choque cultural que, a princípio, me havia perturbado. O que para um compatriota era uma grave falta de educação, e porventura um insulto, para os ocidentais era um fenómeno perfeitamente normal; ali estávamos, conversando durante a caminhada, sem olharmos fixa e profundamente nos olhos uns dos outros, travando a conversa das palavras que em nada se relaciona com a conversa das almas, mais verdadeira. Como é possível que eles confiem uns nos outros, que possam fazer negócios, se desconhecem o que vai no espírito do adversário?
Uma vida na diplomacia tinha embotado a minha sensibilidade. Contei, com todo o à-vontade, que aquele era um acampamento de tuaregues, vindos dos montes Ahggar, tendo abandonado as suas hortas de regadio, e sido obrigados a mudar de vida e de terras por um clima impiedoso que lhes recusava a água. Já não eram nómadas — há muito que as caravanas haviam cessado as travessias do deserto; era impossível que pessoas ou animais sobrevivessem às temperaturas violentas do coração do Sara. E a culpa era dos ocidentais, embora não lhes dissesse isso. Tinham sido eles a lançar as toneladas de dióxido de carbono, ano após ano, na atmosfera, com as suas indústrias de luxo, e os múltiplos carros por habitante, e todo o desperdício arrogante e exagerado pelo qual já tinham começado a pagar. Mas não eram os únicos, pensei, o mundo inteiro pagava pelos erros deles.
Chegámos à vista da aldeia. Tendas de pano fixadas por estacas, cabanas de madeira e pedras, dispunham-se pouco imaginativamente na sombra de um dos últimos oásis que subsistiam naquela latitude. As palmeiras eram escassas, e as folhas, embora frondosas, apresentavam um aspecto amarelecido, nada promissor. A norte, encontrava-se uma plantação antiga, de tâmaras, cereais e hortaliças, a qual era cuidada por alguns dos habitantes; essas culturas estavam condenadas, quando o oásis acabasse por definhar. Para sul, situava-se o futuro.

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No Coração do Deserto

 

Luís Filipe Silva escreveu:

 

Terrarium

com João Barreiros

Editorial Caminho

colecção Caminho Ficção Científica

1996

(leia a crítica de Jorge Candeias)

 

Galxmente — Cidade da Garne

Editorial Caminho

colecção Caminho Ficção Científica

1993

 

Galxmente — Vinganças

Editorial Caminho

colecção Caminho Ficção Científica

1993

 

O Futuro à Janela

Editorial Caminho

colecção Caminho Ficção Científica

1991

 

A Recordação Imóvel

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