R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Três Lágrimas Paralelas

por Artur Portela

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 17.09.2006

Quem pegue num livro da colecção Caminho Ficção Científica e o folheie à espera de encontrar, precisamente, ficção científica, corre por vezes o risco de apanhar grandes desapontamentos, se bem que geralmente até acerte. Três Lágrimas Paralelas é um desses desapontamentos.
É que aqui pouca ficção científica existe. Num livro de muitos contos (26, mais precisamente), quase todos muito curtos (só um ultrapassa as três mil palavras, e, dos restantes, são apenas 5 os que passam as mil), ficção científica é coisa que quase não existe, mesmo que alguma terminologia mais "científica" ou mais "fêcêzística" possa sugerir o contrário. Contando pelos dedos, encontra-se ficção científica nos contos Wenceslau (uma distopia política com um toquezinho xenófobo, passada numa Lisboa dominada pelos japoneses), Corrida no Parque (uma pequena anedota em que "andróides" — que mais correctamente seriam chamados robots — correm sem sentido à procura de um homem que os reprograme), A Campânula (uma pequena distopia claustrofóbica), enfim, talvez também em O Recreio (uma muito curta distopia mais ou menos em jeito de fábula sobre a imortalidade — e a infantilidade?).
O resto são fantasias, fábulas, ou até mesmo simples disparates pseudo-poéticos em que a terminologia cliché da ficção científica (os planetas, as naves, os autómatos) é utilizada de uma forma que parece denotar um completo desconhecimento daquilo que designa, exemplares representantes de uma certa forma de encarar a ficção científica, e até a literatura fantástica em geral, que é muito característica de alguns autores portugueses que passam de vez em quando por essas zonas sem saberem muito bem o que estão a fazer. Veja-se como exemplos os contos Os Baleeiros (um dos maiores contos do livro, onde se misturam os mitos da criação com astronautas), Amarelo (outro conto comparativamente grande em que uma nave pousa por engano num planeta... amarelo), ou Um Som e um Sabor (uma alegoria muito disparatada em que uns tais "fiscais dos seis universos povoados" tentam descobrir o significado da palavra "natal"), entre mais alguns.
No caso de Portela, a inspiração parece ter sido Mário-Henrique Leiria. Nota-se a mesma apetência para a fábula com duplo-sentido político (ver, por exemplo, Antonino e Marcelino, que se refere, obliquamente, a António de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano, os últimos dois ditadores portugueses, ou O Provador de Planetas, uma pequena fabulazinha sobre o poder, em que a velha profissão dos provadores dos alimentos reais é transplantada à força para o espaço), a mesma abordagem algo surrealista e impressionista às histórias (A Pedra de Pedra, A Pedra Que), a mesma opção por contos ultra-curtos e por frases também elas curtas (o mais curto de todos: O Provador de Planetas, que começa e acaba na página 139). Mas Artur Portela não mostra ter nem uma fracção das qualidades de Mário-Henrique Leiria: só muito raramente é capaz de real humor; onde Leiria é conciso e subtil, Portela é repetitivo e enovelado; onde Leiria mostra querer desconstruir um discurso de FC com base num conhecimento bastante amplo daquilo que se fazia no género antes dos anos 70, Portela dá sinais abundantes de nada conhecer além de Leiria.
E depois há o texto propriamente dito. Optando muitas vezes por frases e parágrafos muito curtos e pelo diálogo, Portela dá ao texto um tom sacudido que não se ajusta bem à natureza da maior parte das histórias. Um pequeno fragmento ilustrativo, retirado de O Recreio:
Suspenderam, todos, a respiração.
Recortou-se, na luz da escotilha, uma figura.
Que desceu lentamente, levemente, docemente, a rampa apontada ao solo.
Era uma criança.
Estendeu-lhe os braços.
Enfim, será um estilo. Talvez haja quem goste. Mas há certamente quem deteste.
Três Lágrimas Paralelas é, pois, um livro extremamente dispensável no panorama da literatura fantástica portuguesa. Os poucos motivos de interesse que contém estão muito longe de compensar as suas enormes falhas, e não é, nem por sombras, representativo da ficção científica portuguesa — pode servir bem, isso sim, como representante daquilo que, ao ser apresentado e publicado como o melhor que se faz entre nós, terá levado tantos leitores de FC a fugir dos autores portugueses como o Diabo da cruz.
Conclusão: ●

Gostou deste texto? Ajude-nos a oferecer-lhe mais!

 

Três Lágrimas Paralelas

por Artur Portela

Editorial Caminho

colecção Caminho Ficção Científica, nº 59

1987

leia também o ensaio crítico de João Seixas

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

Artigos de Jorge Candeias

Críticas de Jorge Candeias

Entrevistas de Jorge Candeias

Jorge Candeias - página de autor