Slaughterhouse Five
por Kurt Vonnegut
uma crítica de Alexandre Beluco
publicada em 13.01.2002
republicada em 18.10.2003
Slaughterhouse five, de Kurt Vonnegut, é tradicionalmente classificado como ficção científica, em função de alguns artifícios utilizados pelo autor, mas certamente não foi essa a intenção. O autor fez nesse livro o mesmo que em seus outros trabalhos, mesclando elementos sociais com muita fantasia e um humor negro genialmente bem dosado. Esse livro é talvez uma das mais importantes obras da literatura do século XX, e a opera prima de Vonnegut.
Slaughterhouse five foi escrito em 1969, e conta a vida de Billy Pilgrim, obviamente um alter ego do próprio autor, em trechos sem ordem cronológica, em um estilo descrito por ele mesmo como "esquizofrênico". O livro traz algumas das características marcantes da obra de Vonnegut, que é bastante criativo quanto a forma, com desenhos e citações inseridos no texto.
Billy Pilgrim vai à Segunda Guerra muito jovem e logo cai prisioneiro dos alemães. É levado a Dresden, onde sobrevive a um histórico bombardeio, que ocorreu em circunstâncias duvidosas já que a cidade não possuía indústrias e não era um alvo de guerra. Em seu retorno estuda optometria, casa-se e tem filhos. Em sua maturidade é seqüestrado pelos habitantes de um planeta chamado Trafalmadore, e é colocado em uma jaula com uma estrela fictícia de filmes pornográficos. Mas essa ordem de fatos não aparece na estória...
Billy viaja entre vários momentos de sua vida, entre seu nascimento e sua morte, presenciando várias vezes bons e maus momentos. Esse artifício permite que a história seja composta por trechos relativamente curtos, em uma seqüência que não é temporal mas que segue as ansiedades e desilusões do protagonista. Um artifício ficcional que pode ser confundido com ficção científica.
A leitura do livro não fornece então um clímax óbvio, não no sentido dele ser dificilmente identificável, mas no sentido da fragmentação do texto se refletir na imagem mental que se forma sobre a estória. É claro (mas nem tanto) que o clímax do livro é o bombardeio de Dresden, mas existem outros elementos, cujas importâncias relativas no contexto são intensificadas pelo ritmo do texto.
Vários parágrafos tornaram-se famosos, como um em que um bombardeio aéreo é visto ao contrário, com os bombardeiros abrindo seus compartimentos, recolhendo bombas que sobem do solo e em seguida retornando para casa. Esse parágrafo, inclusive, serviu de mote para Martin Amis escrever 'A seta do tempo', a biografia de um médico que vê a vida a partir de sua morte até seu nascimento.
A estória conta também com a personagem Kilgore Trout, que escreveu inúmeros livros de ficção científica mas não encontrou o devido reconhecimento. Em conversas entre Billy e Kilgore são descritos vários enredos, e sua concretização resultaria em interessantes estórias de ficção científica. Ao mesmo tempo, o autor situa essa personagem em condições difíceis.
Talvez os trafalmadorianos que seqüestraram Billy tenham surgido em sua imaginação por influência dos enredos descritos por Kilgore. E talvez a estrela pornográfica e a jaula em que ambos ficam presos, em um jardim zoológico em Trafalmadore, sejam fruto de fantasias de meia idade. Na verdade, outro artifício ficcional que pode ser confundido com ficção científica.
O contato com os trafalmadorianos não assume dimensões de um contato com seres ou entidades extra-terrestres, como em 2001, de Arthur C. Clarke, ou como em Solaris, de Stanislaw Lem. Esse contato consiste na chance de descrever formas diferentes de percepção do mundo que nos cerca e das pessoas que nos acompanham. Vale lembrar... por exemplo, os trafalmadorianos vêem em quatro dimensões, ou seja, percebem a dimensão tempo, e se vêem como longas centopéias, onde as primeiras pernas são curtas e correspondem aos primeiros anos de vida, e as últimas são mais longas e correspondem aos mais recentes anos de vida.
O contato com os trafalmadorianos é um artifício que permite discutir como a vida deve ser encarada, e esse artifício foi moldado dessa forma, um contato com extra-terrestres, porque as pessoas que transcendem se vêem e são vistas de uma forma diferente. Billy transcendeu como conseqüência de uma série de situações, mas principalmente pela experiência traumática da guerra, e passou a se ver e a ser visto como alguém diferente pelos filhos e pelos amigos. Em muitos momentos recluso, em outros pensativo, muitas vezes perdido entre lembranças.
Vonnegut expressa nessa estória um protesto contra todas as manifestações da estupidez e da maldade humanas, desde a guerra e seus horrores até a mediocridade da vida cotidiana da classe média, incluindo a competitividade destrutiva entre os seres humanos, seja no trabalho seja em suas vidas pessoais. Um apelo para que o ato de refletir seja praticado com muito maior freqüência.
A figura de Kilgore Trout talvez seja outro alter ego do autor. Um exercício de como teria sido sua carreira se tivesse adotado a ficção científica como um jogo lúdico de devaneios baseados em especulações científicas. O próprio autor dá a resposta: a fantasia, em todas as suas formas, só tem utilidade se servir como uma reflexão do que pode ser construído para o futuro.
O fato da ficção científica ser usada em artifícios para uma grande obra da literatura de modo algum diminui esse estilo de ficção, que conta com um número crescente de simpatizantes e contribuidores, mas o enobrece, mantendo-o nos mesmos patamares de qualquer outro estilo de obra literária. Slaughterhouse five foi o único flerte com a ficção científica que concorreu ao Prêmio Pulitzer.
Por fim, é interessante observar como Slaughterhouse five, e mesmo a obra de Kurt Vonnegut, encontra poucos leitores no Brasil. À guisa de explicação, pode-se entender que seus livros exijam uma boa capacidade de "digestão" intelectual, maior do que a fornecida pelos bancos escolares, viciados demais no preenchimento de fichas de leitura. Pode-se entender também que eles forcem o leitor a se defrontar com a verdade, apesar da epígrafe de outra de suas obras sugerir que se viva por mentiras inofensivas, que trazem coragem, bondade, saúde e felicidade.
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