R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Rainha dos Anjos

por Greg Bear

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 02.07.2007

Há livros que passam razoavelmente bem com más edições, más capas, más traduções, más paginações, etc. Seja porque são maus de origem, e portanto não faz grande diferença, seja porque apesar de bons não são particularmente complexos ou experimentais na sua estrutura ou detalhes, e portanto o que de mau a transposição para a nossa língua possa trazer acaba por não estragar muito nada que lhes seja fundamental. Falo, note-se, de mau, não de péssimo, pois o que é péssimo acaba sempre a assassinar.
Pois a Rainha dos Anjos não é um desses livros. Trata-se de um romance complexo e experimental, cheio de peculiaridades tipográficas e estilísticas e uma história que embora seja simples nas suas linhas gerais acaba por se tornar bastante complexa devido à forma fragmentária como é contada, intercalando-se à história principal outras histórias secundárias, umas relacionadas com ela e outras não, embora todas acabem por contribuir para dar sentido ao romance.
A linha principal da história resume-se a isto: numa sociedade em que as tendências criminosas são controladas por intermédio de terapia, em geral voluntária e fornecida antes que essas tendências se desenvolvam por completo, um homem — e logo um poeta famoso — comete um conjunto de assassínios macabros e é procurado por uma agente dp, isto é, defensora pública, que tem a peculiaridade de se ter sujeitado a uma transformação radical do corpo. Este último facto, apesar de trivial, tem alguma importância no desenrolar da trama, mas serve principalmente para Bear mostrar um dos três ramos em que a humanidade se divide no seu universo: o dos transformados. Os outros dois são os terapeutizados e os não-terapeutizados.
Para complicar o enredo, esse mesmo homem é procurado por uma facção razoavelmente terrorista, cujo objectivo é a punição dos criminosos e não a sua simples terapia. A agente dp está convencida de que o criminoso se encontra em poder do ditador de Hispaniola, um estado nascido das ruínas do Haiti e da República Dominicana, mas engana-se, pois o homem está na verdade em posse do pai de uma das pessoas que assassinou, o qual contrata terapeutas caídos em desgraça devido a uma experiência mal sucedida para procederem a uma investigação ilegal do estado mental do criminoso, na esperança de poder obter uma explicação para o seu acto.
Entretanto, bem longe dali, mais precisamente em Alfa do Centauro, uma nave dotada de um programa sofisticado explora o sistema planetário daquela estrela, em busca de vida e, muito em especial, de vida inteligente, "interrompendo" de vez em quando o romance, em geral por intermédio de um outro programa, este localizado na Terra, que inclui entre as suas rotinas uma simulação do programa da nave. Estes programas são autênticas inteligências artificiais, capazes de interacção avançada com os seus programadores, excepto num detalhe: não são conscientes de si próprios. Pelo menos a princípio.
Este último arco de história parece não ter nenhuma relevância para aquilo que o romance pretende contar, ou seja, a busca e eventual captura do poeta criminoso, mas a verdade é que também esse arco principal acaba por ser secundário. É que o livro é acima de tudo um olhar sobre aquilo que constitui a consciência, e todas os arcos que o constituem convergem nessa exploração. Somos apresentados ao conceito do "País da Mente", uma espécie de realidade virtual interna onde todas as rotinas, sub-personalidades e talentos que constituem cada personalidade humana interagem numa simulação onírica do mundo exterior, onde este coexiste com o espaço mítico. O romance procura, portanto, fazer um paralelismo subtil entre esta realidade virtual "natural" e as realidades virtuais informáticas, esbatendo as fronteiras do humano, tudo bem temperado por toques de vodu (daí o arco de história que leva a protagonista principal a Hispaniola).
Rainha dos Anjos é sem dúvida um livro interessante. Mais do que interessante, é um livro complexo e exigente, que está nos antípodas dos best-sellers de leitura fácil e que não se dá bem com leitores que não estejam dispostos a ginasticar os respectivos cérebros ao lê-lo. E, precisamente por isso, é um livro que exige uma edição impecável, uma edição sem mácula, pois a leitura deste romance não se compadece com distracções causadas por falhas da edição.
Infelizmente, se há coisa que não falta nesta primeira e ao que parece última incursão da Devir pela ficção científica são máculas.
Começa logo pelo formato escolhido. O livro é largo demais, com linhas demasiado longas e um papel denso em demasia que o faz pesar muito mais do que seria desejável para uma leitura confortável. Mas o que é realmente catastrófico durante largas secções do romance é o próprio texto. Não posso saber com certeza onde se originaram os problemas, se na tradução, se na revisão ou na paginação, mas tudo me faz supor que o principal responsável pela catástrofe é esta última. Não consigo imaginar nenhuma outra fonte para a gigantesca quantidade de palavras coladas que surgem em grandes troços do livro. Não me passa pela cabeça que o tradutor escreva coisas como "precisam de serconvocadas e entrelaçadas cuidadosamente" (p. 95) ou "anuiuRichard" (p. 149), e estes exemplos estão bem longe de ser os piores. Já me passa pela cabeça que o tradutor se possa distrair e acabe por chamar a uma personagem secundária, no mesmo parágrafo, Sarah Nim e Sarah Nin (p. 173), mas é para detectar estas coisas que servem os revisores. Ou pelos vistos não. E também me passa pela cabeça que possa haver distracções nas peculiaridades tipográficas (por exemplo: neste romance, uma vez que o itálico é usado para outras coisas, os pensamentos são assinalados com o sinal +... o que nesta edição nem sempre acontece, gerando a confusão acerca do que o autor queria fazer com algumas partes do livro), mas é para detectar essas distracções que servem os revisores. Ou pelos vistos não.
Tentar ler um romance complexo através desta floresta de falhas de edição é no mínimo penoso. E se não é imediatamente óbvio porquê, basta dar um exemplo: com tanta asneira, quando surge um parágrafo sem vírgulas o leitor fica sem saber se é estilo, coisa propositada, feita pelo autor e respeitada pelo tradutor, se não passa apenas de mais uma asneira a juntar a todas as outras.
E também não é possível avaliar assim a qualidade da tradução. A única coisa que é possível dizer é que a tarefa era exigente à partida.
Rainha dos Anjos é um bom romance que não merecia ter sido assim tão maltratado por uma editora que, a ajuizar pelo exemplo, ainda bem que não voltou a editar FC. Fazer as coisas assim não vale a pena.
★★★

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Rainha dos Anjos

por Greg Bear

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colecção Portal Devir

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