R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Objecto Quase

por José Saramago

uma crítica de Jorge Candeias

publicada em 20.07.2007

Espelhando talvez um certo desprezo pela forma literária do conto que prevalece no público português, por motivos que este leitor não é capaz de compreender, este é um dos livros mais esquecidos de Saramago. Com a primeira edição datada de 1978, é também um dos livros que antecedem o sucesso que o autor obteve a partir de Levantado do Chão (1980) e, especialmente, do Memorial de Convento (1982). Mas não o antecede de muito, quer em termos puramente cronológicos, quer em termos temáticos e estilísticos como adiante se verá.
Objecto Quase é uma compilação de seis contos, com tamanhos que variam entre a noveleta e o conto curto, unidos por títulos de uma palavra só e por um experimentalismo que prevê várias características da ficção posterior do autor.
Cadeira, o primeiro, é a descrição, com uma minúcia extrema e quase sádica, de todos os mais insignificantes pormenores que terão rodeado o desgaste e consequente quebra da célebre cadeira de onde Salazar caiu. Sem nunca dar nome ao ditador, tratando-o apenas como "o velho", Saramago delicia-se a descrever o modo como imagina que tudo se terá conjugado para que a cadeira ruísse e "o velho" tombasse, como que em câmara lenta, abrindo as portas à queda do seu regime alguns anos mais tarde. Sem elementos fantásticos propriamente ditos, este conto é nisso diferente do ambiente geral do livro.
Embargo é quase um conto de horror puro e duro. Um homem banal, com a sua vida banal embora dificultada por um embargo de produtos petrolíferos que lhe torna difícil abastecer o carro, entra neste num belo dia de manhã e dirige-se a uma bomba... descobrindo de caminho que o automóvel ganhara vida e passara a dominar aquela relação, obrigando-o a viver em função das suas necessidades automóveis, prendendo-se-lhe, ou prendendo-o a si, numa busca frenética por gasolina. Apesar de conter um elemento simbólico claro, reflectindo sobre a teia de dependências na nossa relação com as nossas máquinas e sobre quem, afinal, a domina de facto, a construção do conto e os seus pontos de partida e de chegada nada devem a um conto de horror clássico, jogando com grande habilidade com alguns dos nossos medos num crescendo angustiante.
Refluxo é um conto que pega em alguns temas que o autor viria a retomar mais tarde em romances como Todos os Nomes ou A Caverna: a idealização e geometrização do território por um lado, e os espaços funerários por outro. Num país sem nome, um rei igualmente anónimo ordena que quatro estradas partam dos quatro pontos cardinais e se cruzem no centro do reino onde é erigido um gigantesco cemitério, o único do país, onde não só deveriam passar a ser enterrados todos os mortos do reino daí em diante, mas também para onde seriam transladados todos os mortos anteriormente espalhados por todo o país. Saramago descreve este processo, e o processo inverso, quando de toda esta ordem emerge o caos e as coisas regressam, dir-se-ia que espontaneamente, ao que eram dantes. Só que noutro sítio.
Coisas é o maior conto do livro (uma noveleta), e praticamente uma obra de ficção científica. Logo na primeira página deparamos com um líquido incolor que cura e esconde da vista arranhões, e na segunda encontramos um sofá febril. E é apenas o princípio de uma sucessão de inexplicáveis avarias de todo o tipo de coisas que assolam uma sociedade altamente hierarquizada que vive contente sob o domínio no mínimo paternalista de um governo ao mesmo tempo demasiado ausente e demasiado presente. Quando as coisas começam não só a avariar-se, mas a desaparecer por completo, chegando mesmo a levar à morte de muita gente, torna-se claro que o problema é sério e que o governo, apesar das promessas, é impotente para lidar com ele. As consequências sociais do facto fazem lembrar por vezes as do Ensaio Sobre a Cegueira, mas é o desfecho, surpreendente mas desapontador, que afasta o conto da FC e o transforma numa alegoria pouco condizente com o resto da história.
Centauro é, naturalmente, um conto sobre um centauro. Não um centauro comum, mas o último dos centauros, eternamente submerso numa luta de vontades entre a sua parte equina e a sua parte humana, e sobrevivendo escondido das vistas do mundo há milhares de anos, que regressa por acaso à sua região natal. O centauro deixa-se inebriar pelas paisagens e cheiros da infância e torna-se descuidado, e o desfecho é aquele que já prevíamos desde que ficámos a saber que só aquele centauro resta no mundo. Apesar disso, é um conto bom, bem escrito e bem construído.
Por fim, o livro termina com uma Desforra, um conto curto e campestre, sem qualquer elemento fantástico nem nada mais que lhe dê alguma individualidade, tornando-se assim algo como um corpo estranho no contexto do livro e também o pior entre os seis. Um conto banal.
Os outros não o são. São bons contos, de um autor que se encontrava prestes a encontrar o seu caminho e que já deixava aqui algumas pistas consistentes para quem as quisesse (ou soubesse) ver. Não sendo uma obra-prima, não sendo desprovido de defeitos, não pertencendo por inteiro ao género fantástico (o que não é nem defeito nem virtude mas tem a sua importância para um site como este), é contudo um bom livro cuja leitura se recomenda.
★★★★

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Objecto Quase

por José Saramago

Editorial Caminho

Colecção «O Campo da Palavra»

1984

Jorge Candeias escreveu:

 

Sally

Edições Colibri

2002

(leia a crítica de Octávio Aragão)

 

Desconhece-se o Paradeiro de José Saramago

O Telepata Experiente no Reino do Impensável

Jorge Candeias organizou:

O Planeta das Traseiras

e escreveu a introdução e os contos:

O Caso Subuel Mantil

No Vento Frio de Tharsis

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