Inteligência Artificial
por Brian Aldiss
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 14.07.2003
Eis um daqueles livros de edição oportunística, destinada a apanhar a onda de uma estreia cinematográfica para facturar com a obra literária que lhe deu origem. Por vezes, este tipo de raciocínio por parte das editoras demonstra apenas sentido de sobrevivência, sendo que a edição em si mesma é igual a todas as outras. Outras vezes, no entanto, o oportunismo vai mais longe, e aparecem nos escaparates livros com actores na capa, ou volumes independentes ocupados com um único conto, vendidos ao preço de um romance.
Inteligência Artificial enquadra-se, felizmente, no primeiro caso. Trata-se de um volume compilado pelo próprio Brian Aldiss, que parte dos três contos sobre os "superbrinquedos" que deram origem ao filme de Spielberg mas que vai muito além deles e nos dá uma boa panorâmica da ficção curta mais recente deste autor britânico.
São cinco vinhetas, oito contos curtos e outros oito mais longos, acompanhados por um prefácio onde é explicada a génese do livro, ou seja, a colaboração entre Aldiss e Kubrik no projecto de filmar o conto Superbrinquedos Duram Todo o Verão, que como se sabe foi retomado por Spielberg após a morte de Kubrik.
Os três Superbrinquedos tornaram-se sobejamente conhecidos com o filme. São histórias acerca de um robot humanóide em forma de criança, David, desenhado para substituir o filho que um casal sem filhos não está autorizado a ter num mundo sobrepovoado. O enredo complica-se porque David pensa que é humano e não consegue entender a forma como o tratam nem ultrapassar as limitações da sua programação. A história original é melancólica e triste, Superbrinquedos Quando Chega o Inverno, a segunda história, continua melancólica e ainda mais triste, porque David é posto de parte quando o casal finalmente é autorizado a procriar, e só Teddy, o ursinho de peluche robótico, lhe faz companhia. Este segundo conto ainda resulta enquanto conto independente, mas o mesmo já não acontece com o último, Superbrinquedos em Outras Estações, que necessita dos anteriores para fazer sentido. David e Teddy fogem de casa e vão ter à "Cidade Descartável", um lugar onde se reúnem todos os robots descartados pelo mundo dos homens. É aí que David finalmente toma consciência da sua verdadeira natureza, e é também aí que, sem dar por isso, se acaba por tornar tão humano como qualquer um de nós.
São três contos excelentes, os que abrem este volume. Mas há mais. Não vou falar em detalhe de todos eles, porque são muitos, mas vou tentar dizer qualquer coisa sobre cada um. Para quem não tiver paciência para ler esse conjunto de pequenos apontamentos, o próximo parágrafo faz uma apanhado geral e depois podem saltar com confiança para os dois últimos parágrafos, onde regresso às generalidades.
Em geral, os demais contos seguem mais ou menos a linha dos três iniciais. Em muitos deles, a atmosfera é de abandono, ou de fim de linha, ou de decadência. Muitos têm subjacente um fundo de melancolia. Se fossem contos portugueses, quase se poderia dizer que estavam cheios de fado. E em quase todos há, entretecida no texto, uma reflexão profunda sobre a verdadeira natureza das coisas. Não são contos gratuitos, nem são contos sorridentes, contos adolescentes. São contos maduros, escritos por um homem que se aproxima do fim da vida e escreve sobre isso mesmo, por vezes sob a forma da ficção científica, outras derivando para a fantasia. Ou seja: este é um livro híbrido, nem FC nem F, ou ambas as coisas ao mesmo tempo.
Quanto aos contos propriamente ditos, Apogeu Novamente fala sobre "um mundo muito parecido com o nosso, apenas um pouco diferente", em que os ciclos de vida estão adaptados às mais dramáticas alterações climatéricas. III conta-nos como os interesses privados da exploração espacial ultrapassam tudo na busca do lucro. A Velha Mitologia dá um novo nó à velhíssima história de Adão e Eva, misturando-a com a tempestuosidade doméstica dos mitos greco-romanos. Sem Cabeça conta a história de um "artista da morte", que pretende decapitar-se em directo, na televisão. Carne é um infodump de quatro páginas acerca de um mundo em colapso ecológico e, portanto, político. Nada na Vida é Suficiente conta a história de um homem que se retira para uma ilha em busca de si próprio e encontra outra coisa.
Uma Questão de Matemática é uma história delirante acerca de uma descoberta, ou de várias descobertas, que vão alterar literalmente tudo o que nos rodeia. O Botão de Pausa é semelhante, debruçando-se em jeito de infodump sobre as consequências da descoberta de um "botão de pausa" no cérebro humano. Três Tipos de Solidão são três histórias muito curtas acerca, claro, da solidão: A Felicidade ao Contrário, Um Artista Determinado e Cubos Falantes. A primeira é a história de um juiz, separado da mulher, que lhe escreve cartas acerca de um estranho caso. A segunda conta como e porquê um artista famoso e ultra-bajulado se retira para a Escandinávia após ser criticado por ter uma arte desenraizada. É a história mais mainstream de todo o livro. A terceira fala, claro, de cubos falantes, cubos onde estão contidas impressões holográficas, desfasadas no tempo, de um casal separado pela guerra.
Faltam sete. Steppenferd é uma história passada num mosteiro, na Escandinávia, quase um último reduto de humanidade numa Terra invadida e sistematicamente destruída por uma espécie alienígena. A Capacidade Cognitiva e a Lâmpada é um ultracurto sobre a chegada de uma velha nave-colónia, cheia de cadáveres, a um sistema planetário há muito colonizado por gerações posteriores de naves-colónia mais rápidas. A Sociedade das Trevas é uma história fantasmagórica acerca do céu e do inferno. Galáxia Zê é um conto estranhíssimo acerca do Unicraft, o "fazedor de mundos". As Maravilhas da Utopia é um conto ambíguo sobre o reencontro de velhos amantes imortais. Tornando-se a Borboleta Completa conta a história de um homem em busca de si próprio, que acaba por encontrar-se junto de um mágico bissexual. Finalmente, Um Marte Mais Branco é precisamente aquilo que o sub-título diz: um diálogo socrático dos tempos vindouros.
Relativamente à edição portuguesa, a tradução é, como seria de esperar da Livros do Brasil, imperfeita. Mas não chega a ser verdadeiramente má. Há alguns daqueles erros irritantes de tão gritantes, mas tem-se visto muito pior, nesta e noutras editoras. O livro não é arruinado pela tradução como por vezes acontece. Pelo preço que custa, aceita-se bem. Pena é que a encadernação se desfaça à segnda leitura...
Em resumo, não será uma obra-prima, mas é decerto um livro muito interessante. E recomendável. Quatro estrelas.
Gostou deste texto? Ajude-nos a oferecer-lhe mais!
|