EuroNovela
por Miguel Vale de Almeida
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 11.08.2003
EuroNovela é a obra de maior vulto, no campo da FC, de Miguel Vale de Almeida, autor de mais alguns contos interessantes (e outros nem tanto) no género e, fora do género, de livros de sociologia e de crónicas. Mas Vale de Almeida é mais conhecido do grande público (é certamente o mais conhecido dos autores portugueses de FC) por algo só marginalmente relacionado com a sua condição de escritor ou de sociólogo: Miguel Vale de Almeida é homossexual, e tem vindo a dar a cara ao longo da última década em prol dos direitos dos homossexuais.
As diversas facetas de quem é o autor aparecem no romance: a parte mais séria de EuroNovela preocupa-se mais com aspectos sociológicos do que tecnológicos, e os principais personagens do romance são homo ou bissexuais. Mas nada disso é fundamental, são só características que como que roçam na história, como que lhe fazem tangentes. EuroNovela não é um romance sobre a sociologia da Europa nem sequer, propriamente, sobre uma sociologia possível para a Europa. EuroNovela não é um romance homoerótico (não há cenas de sexo, e as cenas de carinho são muito comedidas), ou que faça a apologia da homossexualidade (há homossexuais relativamente bonzinhos, é verdade, mas também os há maus como as cobras). Não, EuroNovela não é isso.
EuroNovela é uma pilha de 176 páginas de sarcasmo.
O leitor é introduzido a um futuro não muito afastado, em que a União Europeia se estrutura não como uma união de povos que nela participam em pé de igualdade, mas sim como uma espécie de novo império germânico, estruturado num sistema rígido de castas separadas principalmente por linhas étnicas, onde a standartização progrediu de tal forma que os membros de cada etnia têm todos o mesmo apelido, e que se arma em fortaleza contra as ondas de invasores famintos vindos principalmente do sul. A leste, a Rússia colapsou até ao estado tribal entregue às leis da selva humana, num ambiente ao estilo Mad Max, e transformou-se num "protectorado" (leia-se colónia) da União Europeia. Nesta, as instituições mais ou menos democráticas do tempo presente transformaram-se em rituais de poder sem sombra de participação popular, simples apêndices folclóricos da ditadura.
Mas tudo isto aparece em tom de gozo. As castas perpetuam e amplificam todos os estereótipos nacionais que se pode ver uns povos aplicar aos outros por esta Europa fora. Os alemães são organizados e, naturalmente, a casta superior; os portugueses são os "bons alunos", fervorosos europeístas contra toda a evidência, bons para trabalhos de lacaio de nível médio, mas sem serem verdadeiramente levados a sério por ninguém; os franceses são parecidos aos alemães, mas mais descontraídos; e os turcos só servem mesmo para varrer ruas e limpar retretes.
Claro, todas as ditaduras têm os seus dissidentes...
E é precisamente um grupo destes dissidentes (mesmo que alguns deles só sejam dissidentes por acaso. Ou por um azar do caraças) que o romance acompanha numa longa viagem que os leva de Lisboa a Moscovo, passando por Malta, fortaleza meridional da Europa-Fortaleza, onde um mirabolante "Plano do Novo Mundo" vai sendo preparado. Uma viagem que é realizada em parte por vontade própria dos viajantes, em parte por serem empurrados por uma cúpula da burocracia europeia corrupta até ao tutano, sem que a condição germânica das suas principais figuras (embora o presidente Dehors seja francês) sirva para atenuar o que quer que seja nesse particular. Principalmente, mas longe de exclusivamente, Klaus Fischer, Técnico de Gestão Política encarregado da "EuroHaus" portuguesa, cérebro por trás do Plano do Novo Mundo e membro destacado da casta mais elevada da União, os A50.
Sim, o livro é divertido. Sem grandes fogos de artifício tecnológicos, os suficientes apenas para situar a acção num futuro eventual e para dar um aspecto geral de decadência à paisagem, as suas principais qualidades são uma ironia constante (e auto-ironia também, visto que os portugueses não são poupados... nem os homossexuais), chegando com frequência a passar a fronteira do sarcasmo, e um olhar penetrante e impiedoso sobre algumas formas de estar e algumas filosofias de vida que parecem ser internacionais e intemporais, embora em Portugal teimemos em afirmá-las como sintomas desagradáveis da nossa portugalidade.
Não é, contudo, um livro perfeito. O seu principal problema está na sustentabilidade. Explico: Vale de Almeida não consegue sustentar quer o enredo quer a qualidade da prosa ao mesmo nível de princípio ao fim e, a partir de meio, o romance começa aos poucos a perder frescura e qualidade. As piadas tornam-se repetitivas, as situações cada vez mais inverosímeis, os diálogos menos credíveis, a própria formulação das frases menos correcta. Dá a ideia de que o autor terminou o livro à pressa para ainda o entregar dentro do prazo para o Prémio Caminho de 1997, que acabou por ganhar. Ou então que ficou sem ideias novas e pouco mais fez do que limitar-se a gerir os acontecimentos até ao último ponto final. E é pena. Mais bem explorado o tema, mais bem elaborado o romance, este livro poderia até servir como apresentação da FC portuguesa lá fora, em especial noutros países da Europa. Assim, fica curto.
Apesar disso, EuroNovela é mais do que um livro mediano. Quatro estrelas baixas, mas quatro de qualquer forma.
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