Eu, Robot
por Isaac Asimov
uma crítica de Jorge Candeias
publicada em 21.10.2006
É um triste sintoma do estado da leitura em Portugal que tantas editoras se sintam forçadas a aproveitar a onda dos filmes para fazer edições oportunistas das obras que deram origem a esses filmes, ainda que de uma forma só extremamente marginal. Eu, Robot é um caso paradigmático. Se é verdade que o livro de Asimov foi editado originalmente em 1950, muitos anos antes das grandes compilações dos seus contos de robots, não é menos verdade que a própria Europa-América já tinha editado antes não uma mas duas dessas grandes compilações nesta mesma colecção Nébula (Robot Completo, nos. 2 e 3, e Visões de Robot, nº 46). E se é verdade que o filme de Alex Provas tem em comum com o universo asimoviano um título e o facto de mexer com robots com cérebros positrónicos, não é menos verdade que isso é tudo o que há em comum entre uma coisa e outra.
A consequência é que quem compra este livro com o Will Smith na capa e na contracapa está não só a comprar algo que pouco (para não dizer nada) tem a ver com o filme protagonizado pelo sr. Smith, como está a comprar um livro que, à excepção de um único conto, já tinha sido todo editado entre nós. E várias vezes, no caso de certos contos.
E valerá a pena?
Para a editora deve valer, visto que não só a Europa-América já fez várias vezes este tipo de edição, como está bem longe de ser a única a fazê-lo. Isso implica a existência de um sector vasto de público que consome literatura em função do que vai surgindo nas salas de cinema, e as editoras são mais ou menos obrigadas a explorar esse mercado, quanto mais não seja porque se a editora X não o fizer, será ultrapassada pela editora Y, que o faz.
Para o público que lê em função dos filmes que vê, eventualmente também valerá a pena, pois por cada livro completamente adulterado na versão cinematográfica, como aconteceu neste caso, haverá uns dois ou três que até que são razoavelmente respeitados. Esse público obtém geralmente o que procura: outra versão da mesma coisa. E por vezes um ou outro desses espectadores ganhará, talvez, a curiosidade necessária para se transformar em leitor. Em leitor de um autor, talvez. Ou talvez de um género, nos melhores casos.
Mas para o público que lê em função daquilo que se publica não vale minimamente a pena. Um único conto pelo preço de um livro é um mau negócio.
É que nem sequer houve direito a novas traduções. Este volume contém as mesmíssimas traduções de Visões de Robot (Eduardo Saló) e de Robot Completo (José Teixeira de Aguilar). E daí vem o trio de tradutores na ficha do livro, ali ao lado.
A vantagem é que em Eu, Robot se encontram alguns dos melhores contos de Asimov.
Robbie mostra-nos um robot/ama-seca. Um robot ainda primitivo mas já bondoso, à boa maneira dos robots asimovianos, que desperta um amor absoluto à filha do rico casal que o compra. É uma história mais emocional do que é hábito nos contos de robots de Asimov, que se costumam centrar mais nos problemas lógicos decorrentes da aplicação das famosas Três Leis da Robótica, uma história com pontos de contacto óbvios com os "superbrinquedos" de Brian Aldiss.
O Círculo Vicioso é bem mais típico. Ambientado em Mercúrio, protagonizado pela dupla de técnicos Powell e Donovan (só ultrapassados na galeria de personagens dos contos de robots de Asimov pela incontornável e seca Susan Calvin), descreve um problema causado pelas interacções entre duas das Três Leis e o modo inesperado como o problema é resolvido a contento.
Em Razão voltamos a encontrar Powell e Donovan que desta vez têm de lidar com um robot solipsista numa estação solar de captação de energia e seu envio para a Terra. É um conto de uma subtileza invulgar em Asimov, lidando com as armadilhas de certos tipos de raciocínio filosófico e do pensamento religioso, capaz de embrulhar a denúncia do perigo inerente a essas armadilhas da razão numa simples história de mistério/descoberta.
Os dois técnicos voltam a surgir em Apanhem Aquele Coelho, conto ambientado num asteróide mineiro onde a dupla tem de lidar com um robot que se comporta de um modo quase paranóico.
Mentiroso! é por muitos considerado o melhor conto de robots de Asimov. Protagonizado por Susan Calvin e por um robot que tem a capacidade de ler pensamentos, este conto consegue ao mesmo tempo uma profundidade psicológica muito invulgar em Asimov (e na quase totalidade dos contos de FC da golden age) e um tratamento inteiramente lógico, embora muito inesperado, das Três Leis.
Pequeno Robot Perdido, a melhor tradução do livro (várias das outras deixam muito a desejar), é uma história detectivesca em que Susan Calvin tem de encontrar um robot que teve a primeira lei alterada e que desapareceu na Hiper Base, uma base espacial localizada na Cintura de Asteróides e devotada à pesquisa para a obtenção de um hiperpropulsor. É este o único conto não incluído em nenhumas das edições anteriores da Europa-América.
Fuga! afasta-se um pouco do típico conto de robot asimoviano. Envolve não um robot propriamente dito, mas um supercomputador positrónico, chamado Cérebro, que é encarregue de resolver um problema que poderia abrir caminho para a criação de um método de propulsão interestelar. Mas o mesmo problema causou uma avaria irremediável no supercomputador positrónico de uma empresa rival daquela a que Asimov dá maior protagonismo, a US Robots and Mechanical Men Corporation. É também um conto interessante que consegue mesmo tornar-se um pouco surrealista.
Em A Prova, um político emergente é rodeado por boatos de não ser um homem, mas sim um robot, o que pode prejudicar a sua carreira. Terá de fornecer uma prova, e inevitavelmente é Susan Calvin a ter de validar essa prova.
Por fim, O Conflito Evitável mostra-nos um mundo em que os estados-nação passaram à história e as grandes regiões em que o planeta está dividido são governadas, na prática, por supercomputadores chamados Máquinas, que propiciam uma planificação eficiente da actividade económica... mas que começam de súbito a cometer erros.
Não, o forte de Asimov não se encontra na vertente literária da sua literatura. Essa é, na realidade, bastante fraca (tornada pior, com frequência, por traduções que deixam grandemente a desejar). Mas este montro sagrado da FC construiu o seu nome sonante com base num tipo de história-problema de que aqui se encontram nove dos expoentes mais elevados. Este é um bom livro, pelo menos para quem não conhecia antes os robots do escritor americano. Pode-se mesmo dizer que para esses leitores ler este volume faz parte da cultura geral. Mas para os outros, é muito dispensável. Se este livro tivesse saído pouco depois da sua edição original americana, ganharia decerto uma nota muito mais elevada. Mas a sua edição hoje, depois das edições anteriores pela mesma editora e nas mesmas traduções, tem um efeito minguante. Tudo somado,
★★★
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