R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

A Casa Negra

por Stephen King e Peter Straub

uma crítica de Simone Saueressig

publicada em 29.10.2003

Lançado nos EUA em 2001, A Casa Negra, espécie de continuação de O Talismã, chega às bancas brasileiras através da edição da Editora Objetiva em 2003, com uma excelente capa da Pós Imagem Design.
Em A Casa Negra encontramos Jack Sawyer, o pequeno viajante protagonista de O Talismã (editado no Brasil pela Francisco Alves, em 1985 e pela Objetiva, em 2002), já crescido e envelhecido, tal como os leitores que o acompanharam originalmente em sua primeira jornada. Já sabemos que às vezes nem tudo o que se faz é suficiente – Lily, afinal, sucumbiu ao câncer nos anos posteriores à primeira narrativa e todos nós que lemos a primeira edição brasileira de O Talismã em sua época, temos, nos dezessete anos que separam um livro do outro, nossa própria cota de frustrações e tristezas. Também nós construímos – ou perdemos – profissões, e, em maior ou menor medida, enterramos fantasmas, monstros e os territórios de nossa infância em nosso passado. Assim que estamos em um certo pé de igualdade com o personagem central da ação.
O novo romance conta a interferência de Jack Sawyer – agora policial precocemente aposentado – em uma investigação sobre um assassino em série que atua na pequena French Landing, no Condado de Coulee, Wisconsin. E é também a história da interferência do Irreal no Real, e vice-versa, ainda que, de acordo com uma declaração de Peter Straub, os autores quisessem apenas contar uma história ainda mais sombria que a primeira.
O início do livro é marcado pela utilização de "técnicas de cinema" na narrativa, com seqüências de descrições aéreas à vôo de pássaro, que culminam de maneira arrebatadora na volta de Sawyer aos Territórios. Quem ama o personagem não deixará de se sentir entusiasmado com algumas passagens, reconhecendo aqui e ali o menino que atravessou o EUA em busca da cura para sua mãe. Neste livro também encontramos um par de escritores que amadureceu sua colaboração e que são capazes de nos dar páginas de beleza absolutamente poética, descrevendo o êxtase com maestria abrumadora mesmo quando o leitor, cúmplice dos narradores, já sabe da tragédia. E talvez esta seja a principal diferença entre O Talismã e A Casa Negra: no primeiro livro, o leitor é cúmplice do personagem principal, com o qual estabelece elos de afetividade e identidade já no início. Não se sabe o que vai passar em momento algum, pois os escritores não o revelam em nenhum momento. No segundo, o leitor é levado nas primeiras linhas a aliar-se aos narradores e fazer parte de uma espécie de trindade absoluta: os dois autores criam o texto, mas é o leitor, com seu passivo ato de ler, que torna a narrativa "real". E como Átropos, a última das três Moiras da mitologia grega, o leitor não poderá fazer nada com o fio traçado anteriormente, a não ser cortá-lo quando chegar a hora – e já que o leitor é parte do triunvirato criador, ele terá direito, vez por outra, a vislumbres do futuro que são frases inseridas no texto como ganchos que o impedirão de deixar de lado seu trabalho que é ler tudo até o fim. E por certo, caberá ao leitor cortar o fio da narrativa em um determinado ponto, estabelecendo a natureza do final.
São detalhes como estes que fazem de A Casa Negra, um romance basicamente técnico. Enquanto O Talismã concentra quase toda a sua narrativa, de uma maneira apaixonada, nas aventuras e desventuras do personagem que vai crescendo literalmente debaixo do olhar do leitor, neste segundo livro os autores parecem ter esquecido que a técnica narrativa é um meio e nunca, jamais, um fim em si mesmo. Uma breve análise da primeira parte, Bem-vindo ao Condado de Coulee é o melhor exemplo disso: a vôo de pássaro, vemos, primeiro, o cenário. Conhecemos em seguida, e alinhavando o cenário, alguns dos personagens e suas histórias. A maioria deles sobra completamente no enredo embora a longa introdução nos leve a crer, a princípio, que terão uma maior importância. A maioria deles não tem nem a metade da tridimensionalidade dos personagens de O Talismã. Sua presença é mera formalidade e cumpre o papel objetivo de dar à história vítimas pouco interessantes desde o ponto de vista afetivo, mas que rendam sangue, vísceras e escalpos.
Lamentavelmente, formalidade também é o que acontece com alguns dos personagens mais próximos a Jack Sawyer. Os três cavalheiros que o acompanham em sua excursão ao mundo da Casa Negra são pintados apenas em linhas gerais, muito superficialmente. Em contrapartida, alguns elos ficam balançando no vazio da cadeia narrativa. Por exemplo, em um determinado ponto da história, os autores acenam com a possibilidade de Dale Gilbertson, o delegado local, saber e renegar alguma coisa sobre a Casa Negra, da mesma forma como Jack sabe e renega sobre os Territórios. Mas é apenas um aceno que não se concretiza. Talvez felizmente, essa falta de profundidade somada a constante presença dos personagens "amigos", levanta uma dúvida pertinente na confecção dos personagens heróicos e dos romances de maneira geral: o herói, afinal de contas, precisa de um grupo de amigos? Um herói que não tem amigos não será reconhecido como tal?
A "apresentação" dos personagens também segue uma linha técnica, destinada a prender o leitor. Ora, A Casa Negra é uma espécie de continuação de O Talismã. Assim, fica mais ou menos óbvio que o leitor quer mesmo é saber como anda Jack. E portanto, ele é o último dos personagens que aparece em Bem-vindo ao Condado de Coulee. Esta forma técnica de narrar é mantida ao longo de toda estrutura e por isso a visita à Casa Negra do título também acontecerá no final da história. Aliás, a Casa Negra em si mesma é um cenário e tanto, uma homenagem a pintores e desenhistas surrealistas, começando com Escher e passando por imagens altamente evocativas de autores modernos, lembrando, em alguns momentos, as capas de Dave Mckean para o universo de histórias em quadrinhos de Sandman. Ou seja, como imagem, um magnífico passeio. Mas a ação em si mesma, o confronto herói-vilão no final desta parte da narrativa deixa um tanto a desejar e provoca um certo constrangimento ao pensarmos "é só isso?". Ao mesmo tempo, entretanto, é fascinante verificar a transformação final do personagem principal, o último estágio de seu crescimento, por assim dizer, quando ele finalmente assume seu lugar na ordem estrutural da narrativa maior que é seu pano de fundo (A Torre Negra) e lembra, na forma como cobra uma atitude do pequeno Ty, a maneira como ele mesmo foi cobrado por Speedy Parker em O Talismã. O menino torna-se adulto de acordo com as regras da Psicologia moderna e exige da outra criança na mesma medida em que foi exigido um dia.
São detalhes como este que fazem de A Casa Negra um livro digno de ser lido. Ao mesmo tempo, ele pode e deve ser visto como uma grande colcha de retalhos de metáforas. A Grande Combinação, por exemplo, parece refletir uma preocupação existente em todas as sociedades ricas atuais: a utilização do trabalho infantil para mover grandes estruturas, começando pelo básico que é o trabalho caseiro até chegar à industrialização. Irônica preocupação para um país de onde freqüentemente nos chegam notícias da infância assassinando colegas de escola, pais e professores! Por outro lado, Stephen King e Peter Straub levam ao pé da letra a máxima "se você quiser ser universal, fale de sua aldeia". Ao relatar a reação das pessoas do Condado de Coulee após o descobrimento de uma das vítimas do assassino em série, os autores revelam um EUA falido desde o ponto de vista social, ético e moral, perdido e desconcentrado diante da violência urbana. Mas também nos revelam a nós mesmos, igualmente humanos, com os conceitos em xeque permanente neste mundo que nos deixa igualmente perdidos e assustados.
Da mesma maneira os autores levam às últimas conseqüências – realmente, às últimas conseqüências – o conceito de que uma história será alegre ou trágica de acordo com a altura da narrativa onde se ponha o ponto final. Tanto, que se dão ao luxo de informar ao leitor exatamente do que estão fazendo no final do capítulo 28 da parte A Casa Negra e mais além – o que é uma autêntica provocação. E mesmo conhecendo a ambos e à sua capacidade de chocar, mesmo assim é possível que o leitor não espere o remate dado – que é completamente inesperado, mas surpreendentemente inteligente dentro de uma das indagações que levanta, sempre, a escrita ou leitura de um romance: é realmente necessário que todos os acontecimentos estejam relacionados à corrente principal da história, ou alguns, secundários sem deixar de se definitivos, podem – devem – interferir para mudar o curso dos acontecimentos? As dez páginas que compõem o capítulo 29 respondem de maneira cristalina a esta pergunta e também à daqueles que não apreciam histórias de terror, fantasia e afins: por que algumas pessoas lêem e amam estes gêneros? Simples: porque com todo o terror de Drácula, de Frankesntein, de Alien, da Casa Negra ou de Hill House, a Realidade sempre, absolutamente sempre, consegue ser mais terrível, cruel e inflexível que qualquer monstro que a imaginação humana possa gerar. Esta certeza, que é a que destrói completamente a ilusão do livro, que é a que realmente faz valer a pena ler A Casa Negra, por mais dolorido que seja, tenta ser compensada pelas páginas finais – uma mera concessão, absolutamente desnecessária, que infelizmente embacia o que está escrito nas 700 páginas anteriores.
A parte disso, a tradução oferecida no Brasil oferece um problema sério com duas palavras chave do texto: opopânace e abalá. Ambas estão inseridas no contexto como palavras "alienígenas" ao inglês (e o são, deveras) e de acordo com o próprio Jack, citando o Concise Oxford Dictionary (pag. 310 do romance), "opopânace é uma palavra que não se acha no dicionário ou que significa um mistério assustador". Lamentavelmente, em português opopânace tem significado: segundo o Dicionário Aurélio trata-se de uma planta da qual extraí-se uma goma resina da qual, por sua vez, é produzido um perfume. Pode ser que a mesma palavra nas duas línguas tenha significados diferentes, mas o leitor tem o direito de saber disso e é obrigação da tradutora oferecer essa informação. O mesmo ocorre com "abalá" que no português é uma corruptela de "abará", palavra que especifica um determinado prato da cozinha baiana. O fato de apreciar literatura estrangeira não nos dá o direito de obliterar os significados de nosso próprio idioma.
A esta altura, o leitor poderá estar se perguntando se afinal de contas valerá a pena ler A Casa Negra. A minha resposta como leitora é sim. O livro possuí grandes virtudes, trechos maravilhosamente bem escritos e outros atributos positivos, tudo em dose suficiente para sobrepor-se aos problemas apontados. Como O Talismã, A Casa Negra é imaginativa, poética e forte em determinados momentos, embora não atinja o nível do primeiro. Mas é um romance capaz de divertir, sacudir o marasmo e levar-nos a encarar as tarefas do dia a dia, os sustos do noticiário diário, com outro ânimo. Talvez seja verdade que a realidade sempre é mais cruel do que sonha a nossa imaginação, mas esta última não é vã: ela é, simplesmente, a arma ideal para fazer frente aos dias sombrios e tristonhos que nublam nosso calendário.

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A Casa Negra

por Stephen King e Peter Straub

Editora Objetiva (Brasil)

tradução de Adalgisa Campos da Silva

2003

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