A Mãe Bomba e as Suas Crianças
por Rui Pedro Saraiva
artigo publicado em 07.07.2003
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Philip K. Dick escreveu Dr. Bloodmoney em 1963. O título original era mais poético e menos abrasivo: In Earth's Diurnal Course, mas o seu editor da época achou por bem parasitar o sucesso da fábula de Kubrick, Dr. Strangelove, cuja trama tinha alguns pontos em comum com o livro de Dick. (Curiosamente, apesar das semelhanças fonéticas entre os originais, uma tradução literal destrói completamente o artifício — Doutor Estranhoamor soa bem melhor do que Doutor Dinheirodesangue).
O romance teve a peculiaridade histórica de ter sido um entre onze que Dick escreveu em apenas vinte meses. Durante anos circularam rumores sobre essa prolificidade quase sobrenatural, alimentada — dizia-se — por anfetaminas e uma variedade de drogas psicadélicas — rumores que o próprio Dick ajudou a espalhar, apenas para se arrepender mais tarde, e passar grande parte dos anos 70 a desmenti-los. Mas os anos 60 foram — garantem-me — uma década à parte, e os excessos envolvendo substâncias tóxicas eram parte integrante do plano da contra-cultura para atingir os palácios da sabedoria, plano inspirado por gurus tão diversos como Aldous Huxley, Charles Tartt e Timothy Leary.
A verdade é que a escrita de Dick era tão alucinada e surreal (no sentido original destas palavras hoje tão gastas) que é fácil perceber o estado de confusão em que lançou alguns dos seus contemporâneos. Ainda hoje é impossível ler algumas das páginas de Os Três Estigmas de Palmer Eldritch sem ponderar seriamente a hipótese de o seu autor as ter escrito após a ingestão de uma dose exagerada de cogumelos coloridos.
Mas para se escrever em abundância não são necessários estados de consciência alterados; apenas é preciso estar apaixonado por aquilo que se faz. E Philip K. Dick estava a atravessar uma boa fase, talvez o período mais inventivo da sua longa carreira (que abarcou trinta e nove romances e mais de duzentos e cinquenta contos). Tinha acabado de receber o Prémio Hugo (o Nobel da Ficção Científica) por The Man In The High Castle, começava lentamente a agregar uma legião de fãs (especialmente na Europa) que o encarava como um autor de culto, e tinha finalmente deixado para trás a ânsia de ser reconhecido pelo establishment literário, que o tinha consumido durante anos, levando-o a escrever uma série de romances convencionais, indubitavelmente competentes, mas sem a centelha de génio que caracteriza grande parte da sua ficção científica, e que tinham sido sucessivamente rejeitados por diferentes editores. Todos eles viriam a ser publicados depois da sua morte, mas reconhecimentos póstumos, apesar de abundarem na literatura, costumam oferecer fraco consolo a cadáveres.
Segundo o seu biógrafo oficial, Lawrence Suttin, além do hábito anacrónico de snifar rapé, e de alguns estimulantes tomados judiciosamente para o manter acordado enquanto torturava a máquina de escrever durante horas a fio, Dick manteve-se afastado das drogas duras, e as suas experiências com alucinogénicos resumiram-se a uma tarde em casa de Norman Spinrad quando tomou LSD pela primeira e única vez na sua vida.
Uma consequência natural da produção literária abundante é uma qualidade desigual, e um certo desleixe com o detalhe e com o pormenor em cada trabalho individual. O talento de Dick esconde muitas vezes essa falha, dissimulando-a no quadro global da sua obra, mas nem sempre. Dos onze romances saídos dessa memorável odisseia criativa de oitenta e seis semanas, dois/três podiam ter sido confortavelmente enfiados na incineradora, mas pelo menos quatro são obras-primas que figurariam em lugar de destaque no curriculum vitae de qualquer autor contemporâneo, dentro ou fora da esfera da Ficção Científica, a saber: The Simulacra, talvez o livro onde uma das grandes obsessões de Dick — a distinção entre o real e o ilusório — é sujeita a um tratamento mais directo, e cujo vocabulário viria a ser apropriado por Baudrillard; Clans of the Alphane Moon, uma hilariante parábola sobre as repercussões sociais da loucura; o já referido Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, que é, na sua essência, um pesadelo, reminiscente dos sonhados por Lewis Carroll, e que John Lennon pensou em adaptar ao cinema; e Dr. Bloodmoney, or How We Got Along After The Bomb, cujo título foi sensatamente abreviado — na velhinha edição da Colecção Argonauta — para Depois da Bomba.
Uma das virtudes de Philip K. Dick, e um dos muitos factores que o separam do grosso dos outros Argonautas, é a sua facilidade de caracterização, e a textura credível de quase todos os seus personagens. Essa virtude não é acidental; a sua paisagem narrativa é de uma irrealidade constante, e personagens de cartão limitar-se-iam a desaparecer por entre os buracos da página sem que o leitor se preocupasse muito com a sua ausência.
Não há heróis nos mundos de Dick, misericordiosamente livres das figuras messiânicas que pululam pela ficção militarista de Heinlein e Frank Herbert, duas das vacas sagradas da FC. O protagonista típico de um livro de Dick é um operário (carpinteiro, electricista, reparador de rádios, etc.), desajustado, divorciado (o autor experimentou cinco casamentos), em perpétuo conflito com um mundo hostil de objectos inanimados e hierarquias invisíveis, e em constante auto-análise. Dick era um leitor assíduo de Jung, e cada um dos seus personagens é um psicanalista em potência, procurando constantemente as falhas na sua personalidade, para descobrir gradualmente que é o Mundo que é defeituoso e psicótico. Jung chamaria a isto paranóia, acusação de que muitas personagens Phildickianas — e talvez o prório autor — não se livrariam com facilidade. O twist é que nestes convolutos e inesquecíveis enredos a paranóia é quase sempre justificada. Como o autor viria a escrever em Valis, um dos seus últimos livros, "muitas vezes, a única resposta adequada à realidade é enlouquecer". Muitas das suas criações, contudo, teimam em desobedecer a esse credo, esforçando-se por continuar a viver sanamente no planeta claramente variado da cuca que o seu criador lhes legou.
(É interessante notar que Philip K. Dick conhecia e apreciava a cosmologia gnóstica de Valentinus, na qual o nosso mundo fora criado por uma divindade louca e deformada, uma emanação do Deus verdadeiro, que se oculta para lá do Cosmos. O Dick-autor é também esse criador insano, arquitecto de mundos irracionais, onde os personagens enfrentam constantes desafios, não tanto aos seus princípios morais como à sua integridade mental.)
Mas neste livro o protagonista é sem dúvida a Bomba; é sob a sua cogumélica sombra que todos os outros personagens se relacionam, incluindo dois dos arquétipos da era atómica: o cientista louco e o mutante perigoso.
Tal como qualquer boa ficção sobre o futuro ou o passado, Dr. Bloodmoney é na verdade sobre a época em que foi escrito, neste caso os anos de ouro da Guerra Fria, onde a paranóia doméstica na América atingiu proporções absurdas e provavelmente justificadas.
A neurose nuclear não é propriedade exclusiva dos anos 60. Bertrand Russell e Martin Amis exibiram-na com brio em décadas diferentes. Mas suspeito que ter vivido em directo a Crise de Cuba proporcionou um poço sem fundo de psicoses a uma geração inteira, esses treze loucos dias em que, parafraseando um dos conselheiros de Kennedy, "certos dedos pairaram literalmente sobre certos botões", e o planeta pareceu ele próprio pairar sobre o Abismo. Nesses lentos, intermináveis dias, muitos americanos (e russos, certamente) fizeram os seus testamentos e recitaram as suas preces. Num apartamento alugado da Califórnia, Philip K. Dick preferiu imaginar o mundo depois da Bomba.
E esse Mundo, surpreendentemente, não é mau de todo. Os homens não regressaram às cavernas, não se transformaram em canibais, não desataram a desenhar cogumelos luminosos nas paredes. Dick decide imaginar esse Mundo pós-atómico como uma espécie de sociedade rural, onde a célula mais importante é a comunidade local, do tamanho aproximado de uma aldeia, e onde — crucialmente — se inverteram as antigas hierarquias de poder.
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