Leituras Gratuitas
por Luís Filipe Silva
artigo publicado em 01.11.2001
republicado em 10.06.2003
Antes dos «tubarões» das grandes instituições terem tornado a internet num veículo para fazer negócio e aumentar os lucros, havia já pioneiros que tentavam fazer juz ao princípio de que o conhecimento é para ser partilhado. Sigam o rumo dos romances electrónicos gratuitos na internet, nesta senda pelas diversas formas de como ligar os autores aos seus leitores.
No início de 2000, Stephen King agitou o mundo da edição de livros electrónicos ao publicar «Riding the Bullet», uma novela sobrenatural que tornou disponível ao público através do site da editora Simon&Shuster, pelo mero pagamento de 500 escudos. Esta iniciativa teve sucesso imediato, ultrapassando as expectativas e em particular a capacidade dos servidores em responder aos milhares de solicitações para fazer o download do texto - provocando bloqueios na capacidade de resposta, quer da editora quer das livrarias Amazon.com e Barnes&Noble.com, que ofereceram o livro de graça durante algumas semanas.
O livro tem como suporte um utilitário desenvolvido pela Adobe, a reputada distribuidora do Adobe Acrobat, a ferramenta de publicação mais reputada na internet, que requer o registo pessoal do download para funcionar, e que incapacita o leitor de fazer «copy/paste» para o computador. No entanto, em pouco tempo os hackers já tinham descoberto os códigos da protecção e começavam a disponibilizar no «mercado negro» da internet o texto completo.
É pouco previsível que Stephen King venha a sofrer quebras nos lucros devido a esta intromissão, uma vez que as vendas foram da ordem do meio milhão de dólares logo nas primeiras semanas, às quais se devem acrescentar os milhões de dólares não contabilizados de publicidade em redor do seu nome. O autor já assinou novos contratos multimilionários para mais livros, e é expectável a edição em papel, brevemente, do «Riding the Bullet». Muitos dos leitores que quiseram obter o livro em primeira mão irão decerto adquirir a edição em papel, para acompanhar nas estantes os outros livros da colecção.
Mas Stephen King não foi o primeiro, nem sequer o mais original. A publicação de livros e textos literários no formato virtual existe há anos, e tem vindo a desenvolver-se gradualmente com a difusão das ferramentas que permitem o comércio electrónico e as transacções online - bem como o desenvolvimento dos leitores de bolso, pequenos computadores com o tamanho de calculadoras cujos écrans suaves permitiam uma leitura mais facilitada do que os terminais tradicionais. Na verdade, há quem afirme que King nunca teria tido sucesso se não fosse por estes pioneiros, normalmente constituídos por autores e editores a quem os mecanismos tradicionais das grandes casas editoriais tinham recusado a colaboração, e que viram na internet, como tantos outros empreendedores solitários com falta de capital, a possibilidade de tornar público o seu trabalho.
Mas que valor tem então o livro electrónico? A opinião pública considera que é muito baixo. Não se trata de uma questão de formato, mas sim de qualidade final do livro. Afinal, por muito divulgada que esteja a internet, ainda é no mundo real que a cultura é falada, é vista, é discutida, e é remunerada. E um autor, pretendendo dar a conhecer o seu trabalho, irá tentar em primeira mão os meios tradicionais, embora dada a versatilidade da tecnologia, já não descure a publicação virtual. Logicamente, na internet só restará o refugo, os rejeitados.
No entanto, é bem possível que as tendências estejam a mudar, e muito rapidamente. A associação de editoras reputadas com pequenas oficinas do livro virtuais, o encerramento de revistas tradicionais de grande circulação para passarem ao seu formato online - como foi o caso do «escândalo» da OMNI, há alguns anos -, bem como o recurso de certos editores a empreendimentos solitários e individuais, como o caso da revista «Event Horizon» de Ellen Datlow, o site dedicado a autores «Writers Online» de Nancy Kress e a revista «Tangent» publicada por Algis Budrys denotam que, mesmo que a era dos livros electrónicos ainda demore, a nova tendência encontra-se já a bater-nos à porta.
Como sempre, um novo meio de divulgação vem trazer ao mercado novos jogadores e novas formas de influência - e os autores procuram adaptar-se e aproveitar os ventos de mudança. Começa a ser tradicional que todos os autores tenham um site pessoal com cariz «institucional», servindo essencialmente de catálogo para as suas obras, indicação da sua biografia, alguns artigos ou manifestações de natureza pessoal, informações e eventualmente «links» para livrarias virtuais que permitam disponibilizar os livros aos interessados. Alguns com mais conhecimentos tecnológicos, ou dinheiro para investir, criam verdadeiros fóruns de discussão, actualizam o site amiúde, adornam-no com imagens e música, e publicam newsletters, tudo de forma a manter o leitor permanentemente exposto e recordado de que o autor existe e se encontra a produzir.
Orson Scott Card constitui um dos melhores exemplos. «Hatrack River», baptizado segundo um dos rios mais famosos da sua série de fantasia «Os Contos de Alvin Maker», parece ter sido abençoado com o mesmo tipo de magia, pois em pouco tempo concentrou a actividade dos fãs, dando-lhes possibilidade de ler obras ainda em fase de produção, conversar com o autor, discutir sobre as implicações religiosas e filosóficas das suas obras, e no fim, como Orson Scott Card explica em algumas das suas obras mais recentes, incentivá-lo a fazer continuações dos livros que lhe granjearam mais prestígio. O site tem uma actualização periódica, bastante actividade, e serve como «montra» para dar a conhecer os novos lançamentos e actividades literárias de Card.
Abordagem semelhante foi a escolhida por Greg Egan, cuja página pessoal contém não só uma selecção de artigos e contos publicados em revistas, alguns deles premiados, como um conjunto de aplicativos que exemplificam as obsessões e os temas científicos predominantes na sua obra. Por vezes, a riqueza de informação pode ser nefasta, como ele próprio descobriu quando encontrou numa revista do género a transcrição de uma entrevista que nunca chegara a dar. Aparentemente, o cronista encarregado de fazer uma reportagem sobre o autor não conseguiu entrar em contacto com ele, e aproveitou material da internet para «fabricar» uma entrevista. A situação foi denunciada, e o cronista em causa foi expulso. Mas a questão do copyright e da facilidade de reprodução de texto e informação na internet permanece.
Mas para estes autores conduzirem os fãs ao site e levarem-nos a partilhar um sentimento de comunidade foi facilitada pelas provas dadas no mundo real, pelo catálogo de romances e contos e temáticas que foram sendo desenvolvidas nas páginas e colecções frequentadas pelos entusiastas do género. A internet acabou por ser apenas um meio facilitador da conversa. Mais dificuldade tinham os autores pouco conhecidos, ou com poucas obras, ou publicados por editoras de vão de escada - alguns destes teriam de recorrer a métodos mais criativos.
Douglas Clegg encetou por essa via. No ano passado, excedeu as expectativas ao publicar em formato de série o seu romance de terror «Naomi» por email, antes de ter sido impresso e distribuído no formato físico pela editora. Tendo ido contra os avisos de que iria perder leitores e desperdiçar uma boa obra, Douglas Clegg não só chamou a atenção para a sua capacidade de escritor, como, julga ele, aumentou a saída de um livro que de outra forma não teria tido visibilidade.
E de facto, é bem capaz de ter razão, pois Clegg é publicado por uma editora obscura, a Subterrean Press - aquilo que nos EUA se considera uma small-press e que em Portugal é uma editora de média dimensão, publicando alguns títulos por mês apenas com tiragens de dois ou três mil exemplares. Num mercado em que existem cerca de 200 títulos novos por ano só no género da FC e Fantástico, e em que os livros mid-list, que servem para encher espaço de prateleira e têm uma rendibilidade baixa, duram apenas duas semanas nas livrarias e logo desaparecem, a visibilidade acaba por ser praticamente nula, com uma tiragem desta dimensão. Clegg tem agora 4 mil leitores que subscreveram a sua «mailing list» da Yahoogroups.com, e que a partir de 30 de Julho de 2000 começarão a receber periodicamente os capítulos do seu novo romance Nightmare House - trata-se de uma história centrada ao redor de uma casa assombrada que contém um mistério tenebroso, e o autor promete um livro fortíssimo. É de novo um livro de terror. E sem dúvida que os leitores não ficarão satisfeitos em ter o livro no formato de papel impresso: é tão barato e prático comprá-lo numa livraria, uma compra segura pois já se conhece parte da história, e pode-se sempre emprestar aos amigos. Obviamente que alguns, tendo-o lido no formato electrónico, nunca terão vontade de gastar dinheiro em algo que já conhecem - e nestes o autor e a editora perderão dinheiro. Mas é possível que, agora que o conhecem, tenham vontade de comprar os livros anteriores, ou até os seguintes.
Clegg sabe que o verdadeiro potencial de um autor se encontra na capacidade de atrair, encantar e manter a audiência. É isso que o mantém vivo e a escrever. No mundo real, um autor está condicionado pela dificuldade em atingir as pessoas que gostariam de o ler: diga-se que as duas maiores razões pela qual um autor não vende têm a ver com a indisponibilidade dos seus livros nas livrarias adequadas e com o desconhecimento por parte dos potenciais leitores. Grande parte das vendas num início de carreira está ligada à compra espontânea - e quando esta compra não é facilitada, os leitores esquecem-se e desistem. Por essa razão, a par da mailing list que serve de distribuição para os capítulos dos seus livros, tem outras duas, destinadas a meras conversas, a um fórum de discussão entre o autor e os seus leitores. Douglas Clegg encontra-se sempre presente, mesmo que de forma difusa, na caixa de correio dos seus leitores.
Outros autores encontram-se, em início de carreira, a tentar ganhar um conjunto de seguidores com iguais técnicas. De certa forma, estamos a retomar o espaço dos folhetins e da literatura de cordel, que outrora tornou famosos Charles Dickens e Camilo Castelo Branco. Quem acaba por ganhar com a situação são os leitores internacionais, os que teriam apenas com grandes dificuldades acesso às obras, ou conhecer o nome dos autores - os que seguem atentamente os sites de FC por esse mundo fora.
Mas ainda assim, na imensa floresta (ou deserto?) em que a internet se transformou, um mero autor encontra-se a ter cada vez mais dificuldade em levar a cabo estas iniciativas, pelo que as peças se encontram a voltar ao lugar. Pois nada garante a qualidade do que se irá ler. É sempre possível ignorar, apagar as mensagens ou cancelar assinaturas - mas ainda assim há quem não se dê sequer ao trabalho de tentar.
Para obviar este problema, há quem esteja a transformar a internet numa imensa biblioteca. Iniciativas como o Projecto Gutenberg que são mais antigas que a WWW (a versão gráfica e navegável da internet), ajudam a enriquecer o espólio dos clássicos disponíveis a qualquer um, a qualquer momento, tendo por base o donativo (em esforço) de voluntários que se oferecem para passar a computador os textos dos livros cujos direitos já vingaram. Neste site podem ser encontrados os grandes livros dos séculos passados: H. G. Wells, Platão, Homero, a Bíblia, Stoker, Defoe, Swift, Shakespeare, Milton, Dante, Tolstoy, Balzac, entre muitos, muitos outros. Uma vez ultrapassada a dificuldade de ler o formato ASCII, têm-se à disposição um grande manancial das obras que formaram o pensamento moderno.
Livros mais recentes, no entanto, são difíceis de encontrar, pela questão dos direitos de autor. Mas não é de todo impossível. No campo da ficção científica (FC), destaca-se a revista Infinity Plus. Dirigida por Keith Brooke, também ele autor de FC, contém um grande número de contos e artigos dos melhores autores da actualidade, publicados com a permissão destes. É sem dúvida o local onde se pode encontrar grande parte dos autores que hoje em dia constituem o núcleo central da FC anglo-saxónica (e por inerência a mundial). Alguns destes textos, e outros, encontram-se também no site Steampunk, que mistura a história alternativa com o género.
Outros locais onde se pode encontrar FC original de boa qualidade estão nos defuntos Omnimag e Event Horizon, já mencionados. Ambos tiveram origem num projecto editorial de Ellen Datlow, durante anos a editora de FC da revista Omni, sobejamente conhecida por, em parceria com Terry Windling, publicar a colectânea dos melhores contos de Fantasia e Horror de cada ano. Primeiramente na versão electrónica da Omni, e depois no seu próprio site, Datlow tentou manter viva a chama da sua capacidade editorial, publicando mensalmente uma novela dos melhores autores do género (a selecção era tão boa que algumas das histórias granjearam prémios). Mas qualidade parece que não basta para uma revista virtual, e em breve o projecto seria encerrado, pois visitantes e cliques não bastam para pagar contas quando os anunciantes se recusam a pegar no projecto.
Então em que ficamos? Talvez em sites como o BiblioBytes que publica livros electrónicos, mas mantém uma selecção de obras clássicas e actuais que disponibiliza gratuitamente no site. Entre outros, podemos encontrar uma antologia de contos sobre vampiros - contos escritos no século passado, antes da obra de Bram Stoker. Parable of the Sower, uma das mais polémicas novelas sobre o racismo, escrita por Octavia Butler; Gadget Man de Ron Goulart; The Ice Dragon's Song de Bud Sparwawk, colaborador frequente da revista Analog.
Essencialmente existe FC na internet, disponível, gratuita, abundante e com qualidade. E não só FC, como literatura mainstream, policiais, romances históricos, grandes clássicos - tudo, no entanto, com predomínio na língua inglesa. Falta uma iniciativa portuguesa de colocar os clássicos portugueses disponíveis a uma comunidade de leitores da que é a quinta língua mais falada no mundo. Existe o Projecto Vercial, e o Cyberkiosk, mas que se encontram aquém do que já existe em língua inglesa, e mesmo em francesa. E a internet acaba também por ser a forma de descobrir a literatura de FC não anglo-saxónica. Espanha tem os seus autores, bem como Itália e França, e algumas das suas obras estão na net. Autores brasileiros como o Gérson Lodi-Ribeiro já têm as suas próprias páginas, e lá divulgam os contos e artigos que vão publicando esporadicamente, tornando-se assim conhecidos para uma comunidade maior. Já não há desculpas para não conhecer ou não ler - ou melhor, a culpa agora é dos motores de pesquisa, e se são capazes de dar resposta aos pedidos de conhecimento.
(Adenda 2001) Na internet, tudo muda, e muito depressa - prova cabal de que nela as verdades eternas nunca resistirão. Tal acontece com as afirmações do parágrafo anterior, que sites como o presente E-nigma, do Jorge Candeias, vieram matar de morte matada.
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