R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

A Idade da Inocência Passou

por César Silva

artigo publicado em 19.08.2002

republicado em 23.06.2003

Estive ponderando sobre os significados da arte de escrever.
Durante anos temos debatido o que teria mais significado para a FC em português, se a forma ou a história, sem nunca termos chegado a uma conclusão geral. Cada um fica com sua verdade e a vida continua um pouco pior que antes, deteriorando o grupo a cada novo debate, fezendo estragos irrecuperáveis não só no Brasil, mas também no fandom lusitano.
Eu também me enganei a esse respeito. Sempre valorizei a história em detrimento da forma. É uma questão óbvia para quem se fez no gênero principalmente como leitor. O leitor médio, em geral, não está muito a fim de apreciar os limites do estilo, quer divertir-se do modo mais confortável que puder. É possível divertir-se com a forma, mas como esse divertimento exige uma participação maior do leitor, perde boa parte do conforto.
No caso da FC publicada no Brasil, chega a ser anacrônico cogitar que algum dos leitores tenha interesse em se divertir com experimentalismos formais. O grosso da FC&F que consumimos é traduzida, muitas vezes mal, e não sobra muito do estilo e da forma linguística dos textos originais para serem apreciados, se é que eles os tinham.
Se o fã for considerado, por definição, um nerd descerebrado que só tem capacidade para usar um neurônio de cada vez, imagina-se que quando ele, leitor ou autor, quer se divertir não há espaço para qualquer profundidade além da diversão mais rasteira. Não é de estranhar, portanto, que a maioria dos textos que emergem dos autores iniciantes naveguem por águas conhecidíssimas e aparentemente seguras, contornando um litoral mapeado há séculos e optando pela anedota, pela sátira, pela paródia ou pelo famigerado final-surpresa, quando não todos ao mesmo tempo.
Mas isso tudo é uma armadilha mentirosa. Nós, os leitores/editores/autores de FC&F, temos sido particularmente suscetíveis a ela. Basta que percebamos que o leitor de FC&F não é o nerd descebrado que julgamos que seja. Muito ao contrário.
O produto literário pode (e deve) reunir muitas "qualidades" simultaneamente, determinadas pela eficiência com que cumprem seus objetivos. Pode ser uma literatura de entretenimento sim, mas também pode ser educativa, experimentalista formal e/ou gramatical, de registro (histórico, geográfico, cultural, etc.), militante, exploratória (da psique, da alma, do caráter, da cultura, etc.) e muitas outras. Cada uma tem suas estruturas e protocolos, e o autor em busca de um espaço na sua cultura (e nas livrarias) precisa conhecê-los em profundidade - inclusive para subvertê-los -, saber escolher e determinar os objetivos de sua obra e a melhor forma de cumpri-los. Isso passa por um processo de aprendizado longo, doloroso e labiríntico, com muitas tentativas e erros, o que torna o produto literário refinado um material muito raro e valioso.
Um trabalho produzido com o único objetivo de divertir sem nenhum outro compromisso, seja com a língua em que é praticado ou com as estruturas que a definem, resultará numa literatura frívola e sem valor. Não consigo aceitar que um editor inteligente tenha a leviandade de arriscar sua reputação intelectual e ofender a de seus leitores publicando esse tipo de texto. Ao contrário do que pode parecer, ou do que o editor medíocre queira acreditar - pois torna seu trabalho mais fácil -, o leitor de FC&F não é estúpido. Ele vai perceber que está sendo sacaneado e irá desprezar o produto literário de má qualidade, o que fatalmente vai contaminar a reputação não só do editor, mas de toda a publicação.
Por isso não posso aceitar que se reduza o produto literário, qualquer que seja, incluindo os fanfics e tie-ins, a uma pintura de dedos grosseira e sem classe.
Eu sempre tive grande dificuldade em fechar um texto. Cada frase, cada parágrafo, martirizam-me. E o martírio não acaba com o ponto final, porque quando o texto é publicado, dali a uns dias eu vou ter que enfrentá-lo de novo, e dessa vez não vou mais poder corrigir o que não soar bem. Estará ali para todos lerem, será o meu pecado eterno.
Pensava que isso era uma deficiência minha. Tinha admiração pelos colegas que conseguiam escrever com tanta desenvoltura que poderiam ter pronto, em poucas horas, um conto, ou, em poucos dias, uma noveleta, ou ainda, em poucas semanas, um romance. Mas há uma perda para quem escreve assim. O produto final fica banalizado porque, para favorecer o prazo de produção, o autor faz uso de estruturas recorrentes, soluções fáceis, vocabulário limitado e repetitivo, personagens bidimensionais ou estereótipos, etc., perdendo boa parte da beleza literária e da personalidade artística. Embora possa conter uma história divertida, nunca passa de um texto medíocre sob qualquer outro ponto de vista e não terá muito a acrescentar nem mesmo ao gênero em questão.
Achei que era uma piada quando vi, na série televisiva Grandes Mestres da Literatura (exibida no Brasil pela TV Cultura e suas repetidoras), a dramatização de uma passagem da vida do escritor irlandês James Joyce. Ele, refastelado no sofá, fumando prazerosamente um charuto, confidencia à esposa: "- Hoje tive um dia muito produtivo, trabalhei tranqüilamente e sem parar." - a esposa retruca "- Quanto escreveu?" - ao que ele responde "- Dois parágrafos."
Mas não era uma piada. Afinal, dois parágrafos de Joyce valem 10 vezes toda a literatura de FC&F feita no Brasil, com boa folga. Entendi isso quando li um pequeno texto condensado de um artigo de Gabriel García Márquez no livro Os escritores, publicado no Jornal do livro (nº 7, maio/junho, 2002). Ele diz "Em um bom dia de trabalho, das nove da manhã até as duas ou três horas da tarde, o máximo que consigo escrever é um parágrafo curto, de quatro ou cinco linhas, que geralmente rasgo no dia seguinte."
Ora, qualquer um que tenha um dia pensado em escrever deve ter sonhado em ser reconhecido. O problema dos escritores de FC&F no Brasil é que, para sua literatura ser reconhecida para além do reduzido grupo de seus fãs (que não são difíceis de cooptar, uma vez que essa espécie em extinção criou-se à base da leitura de bobagens inúteis, com pouca ou nenhuma proteína cultural), terá de ser boa para toda a literatura, porque o nosso mercado livreiro não é, e temo que nunca será, segmentado.
Perguntam: mas se o nerd deslumbrado não tiver onde se exercitar, como poderá evoluir seu trabalho? Essa é outra armadilha mentirosa. A publicação fácil na verdade banaliza o produto literário.
Não é preciso publicar para aprender a escrever com qualidade. São outros os processos de aprendizado, mais eficientes justamente por não serem dependentes da publicação: oficinas, workshops, estudo sério com mestres de qualidade, muita leitura, pesquisa e o máximo de cultura que se puder reunir. José J. Veiga, um dos grandes fantasistas brasileiros, só veio a estrear na literatura depois dos 40 anos de idade e de mais de 10 anos escrevendo os contos que compuseram sua primeira antologia, Os cavalinhos de platiplano, e resultou num livro muito bom, eu diria irrepreensível.
Isso coloca toda a literatura brasileira de FC&F em uma tremenda enrascada.
Temos promovido a evolução exclusivamente dos aspectos técnicos do gênero e desprezado a maior parte das questões que realmente caracterizariam a dita Boa Literatura. Se alguns poucos de nossos autores fizeram diferente foi por iniciativa pessoal, não houve fomento por parte de editores (de revistas, fanzines ou o que seja) ou do fandom de FC&F na valorização das demais qualidades do texto, ao contrário, houve um afastamento, uma ruptura. Um grande desprezo pelo cânone, pelo mainstream, ou qualquer que seja o nome do espaço para além do gueto de FC&F, sem que sequer tenhamos chegado a groká-lo.
Não nego que tem sido confortável chafurdar na lama formada por nossas próprias fezes, tal como os alienígenas de Os negros anos-luz, de Brian Aldiss. Mas isso nos fez mal. Muito mal. Estamos contaminados até a medula por nossas próprias bactérias, de fato estamos viciados nelas, de tanto recusar olhar já não conseguimos mais ver para além da borda do lodaçal que construímos e que está pouco a pouco ressecando e diminuindo o perímetro.
Estivemos errados por muito tempo. Temos que sair daqui se quisermos sobreviver, seja como autores, fãs ou editores. A merda seca, tornada em pó, é elevada pelo vento e já começa a impedir nossa própria respiração.
Quem tiver competência, é a hora de decolar. Quem ainda não aprendeu a voar, meus pêsames. A idade da inocência passou.

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César Silva é editor do fanzine

Hiperespaço

 

 

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