R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Amores Viris

por Simone Saueressig

artigo publicado em 01.11.2003

"Rindo, Saad contou-me algumas histórias da dupla famosa. Constituíam um exemplo da afeição entre dois rapazes, tornada inevitável pela segregação das mulheres. Tais amizades levavam freqüentemente a amores viris de uma profundidade e força além do que se podia imaginar. Quando inocentes, eram intensos e sem qualquer constrangimento."
Os Sete Pilares da Sabedoria, T.E. Lawrence, Editora Record, 2ª edição, pg. 214 e 215. Tradução: A. B. Pinheiro de Lemos
 
Com a popularização de O Senhor dos Anéis, o livro, graças ao filme homônimo de Peter Jackson, tenho me deparado mais e mais vezes com uma atitude bastante curiosa por parte dos leitores / espectadores, atitude que vi refletida muitas vezes em correspondências via rede ou em artigos sobre as obras. Críticas em revistas, tanto referentes aos filmes, quanto referentes aos livros (embora estas sejam em menor número porque, obviamente, os críticos preferem passar três horas em um cinema do que vários dias lendo um romance), destacam, às vezes de maneira maldosa, o que se convencionou chamar de "o relacionamento entre Frodo e Sam".
A simples maneira de focalizar o sentimento que une os dois hobbits, cuja jornada é a linha mestra da trilogia, e de cujo resultado depende a própria guerra entre Mordor e Gondor, ou, em outras palavras, entre o Bem e o Mal, já é bastante conclusiva. Ninguém, ou poucos, comentam "a amizade" entre Frodo e Sam, "a dependência" entre ambos, onde a sobrevivência de um significa a sobrevivência do outro e a possibilidade de êxito da missão, "a camaradagem", "a solidariedade", "o sofrimento compartilhado", ou, simplesmente, a humana e fora de moda "piedade". De saída, coloca-se o "relacionamento" entre os dois personagens, expressão neutra, mas sempre um eufemismo. Sobretudo no Brasil, "relacionam-se" (entre aspas), os amancebados, os amantes fortuitos, os namoros efêmeros e sem comprometimento. Em suma, faz-se uma ligação subliminar entre "relação a dois" e sexo.
Outros críticos mais audazes, levantam claramente a possibilidade da homossexualidade entre os dois heróis, o que geralmente levanta bolhas de indignação, causa crises em amizades e leva o leitor apaixonado a cortar relações com tal "monstro", capaz de pensar semelhante coisa de seus dois inocentes e bondosos heróis... Porque a trilogia de Tolkien tem dois tipos de leitores: os que não passam da página 30 e os que vão até o final. E estes dois últimos dividem-se, por sua vez, entre os que amam e os que odeiam a obra. Nunca encontrei um meio termo.
A história da "confecção" de O Senhor dos Anéis é cercada, atualmente, de muita intriga palaciana e lendas urbanas. Começando do começo, O Senhor dos Anéis é uma obra decorrente de O Hobbit, escrito entre 1930 e 1937 (ano de sua primeira publicação). O Hobbit, como outros livros do mesmo autor publicado posteriormente a sua morte, começou como um conto familiar, uma história que o imaginativo professor de inglês contava para entreter os filhos. Uma vez publicado o volume, sua aceitação foi tão grande entre os adolescentes da época, que tanto leitores quanto editores pediram ao autor que escrevesse uma continuação das aventuras de Bilbo Baggins. Embora relutante em muitos momentos durante a escrita de O Senhor dos Anéis, Tolkien levou o projeto a cabo depois de quase dez anos de trabalho. Assim, o primeiro ponto que se deve levar em conta é que O Senhor dos Anéis foi escrito, basicamente, para ser lido pelo mesmo público que se divertira com O Hobbit, e como seu primeiro público era a própria família, esta leitora duvida muito, sobretudo após uma passada pela biografia do autor e após a leitura de várias de suas obras traduzidas para o Português, que a sensualidade de seus personagens, destinados a um público infanto-juvenil, fosse muito além de uma sugestão: por exemplo, sabemos que Tom Bombadil é casado com Amorad'ouro. Portanto, subentende-se que este personagem é heterossexual.
Entretanto, existe a afirmação bastante conhecida, por exemplo, de que a trilogia seria uma alegoria à Segunda Grande Guerra, coisa que o autor negava rotundamente. Ou seja, milhares de leitores encontraram em O Senhor dos Anéis uma referência a situações pelas quais o autor passou ativa ou passivamente, mais proximamente (o período da Primeira Guerra, durante a qual Tolkien serviu por um certo espaço de tempo), ou mais afastado (o período da Segunda Guerra, durante a qual O Senhor dos Anéis estava sendo escrito). Embora esta leitora não seja uma expert no tema Segunda Guerra, é difícil reconhecer na trilogia episódios que lembrem o período histórico. Seria o caso do maniqueísmo de que está embuída a obra? Talvez. Mas centenas de livros também são maniqueístas e nem assim as pessoas vêem neles uma alegoria à Segunda Guerra. De qualquer maneira, admitamos que no que se escreve há muito mais do que deseja conscientemente o autor. Talvez a obra seja uma alegoria sem que seu próprio criador o tenha imaginado.
Da mesma maneira talvez a idéia de que Frodo e Sam tenham entre si mais do que uma profunda amizade não é completamente disparatada. Talvez seja algo que esteja ali, subliminar ao texto, compreendido apenas pelos que já têm uma experiência de vida ou uma cultura aberta o suficiente para compreender o que o autor jamais admitiria ter escrito. Afinal, sabe-se que nos períodos de guerra, soldados terminam levando às últimas conseqüências a solidão, o desespero, a morte e o amor, e que estes sentimentos não raro levam o ser humano a atitudes que em situação normal de paz e tranqüilidade não seriam sequer esboçadas. Daí a citação que abre este texto, escrita por T. E. Lawrence, espião e ativista inglês infiltrado no mundo árabe com a missão de levar as tribos dispersas a libertar a Arábia do poderio turco, no início do século XX.
Nisto se resume tudo: a situação enfrentada pelos dois hobbits, em uma terra hostil e estranha, cercados por inimigos mortais, guiados por uma criatura na qual é impossível confiar, portadores de um segredo que pode ser sua morte, caso for descoberto, com uma missão impossível de ser levada a cabo. Sem dúvida nenhuma, esta não é uma situação normal, sobretudo se levarmos em conta o mundo seguro e banal que o autor descreve no início do livro. Se ambos tivessem ficado no Distrito durante todo o episódio, talvez tivessem lutado lado a lado contra os novos "chefes", talvez tivessem dividido a mesma cela em Miguel Delvim, mas dificilmente alguém poria em evidência sua sexualidade. Mas Frodo e Sam compartilham um caminho muito diferente: compartilham fome, cansaço, medo e uma carga grande demais para ambos. Compartilham desespero e insegurança. Compartilham perigos e entregam a vida nas mãos um do outro o tempo todo. Devemos realmente nos escandalizar quando compartilham também um dar-se as mãos, um abraço, uma lágrima ou um beijo?
Há vários momentos capazes de assombrar os leitores mais radicais quanto a demonstrações de carinho entre pessoas do mesmo sexo, sobretudo se forem homens, em vários pontos da obra. Destaco os momentos posteriores à luta com Shelob, com o beijo que Sam deposita na fronte de Frodo, que ele crê morto, e o beijo que o mesmo personagem deposita na fronte de Frodo quando o reencontra na Torre de Cirith Ungol. Mas em vários momentos, Sam também carrega, literalmente, o extenuado companheiro de viagem nos ombros. Será isso uma prova de homossexualidade? Será qualquer coisa das citadas, inseridas na situação anormal que ambos enfrentam, uma prova de homossexualidade? Ou será essa impressão um engano causado por uma cultura ocidental de classe média, sessenta anos posterior ao período em que foi escrito o livro, envolvida com um dia a dia banal, onde a violência é mais uma mazela urbana, e cuja a luta pela sobrevivência limita-se a conseguir um emprego que garanta um salário no fim do mês, férias e aposentadoria pagas? Uma cultura que transformou a guerra em mais uma profissão e que parece cada vez menos capaz de compreender qualquer expressão física de carinho como outra coisa que não sexo?
Quando O Senhor dos Anéis foi escrito, havia uma moralidade regente aparentemente muito diversa da de hoje. Homossexualidade era algo sobre o qual não se falava, sobretudo com crianças e adolescentes. Era um erro, uma doença, um desvio de conduta – visões contra as quais, hoje, as entidades e associações homossexuais lutam com o aparente apoio de um bom segmento da sociedade culta e educada. Depois da Segunda Guerra, e sobretudo depois dos anos 60, muita coisa mudou. Mas no caso da homossexualidade, tal comportamento continua despertando as mais variadas atitudes. Hoje se fala abertamente no assunto, mas será que isso o leva a ser aceito com menos preconceito? Então por que o deboche dos assistentes do filme nos trechos que põem em evidência os sentimentos de um personagem pelo outro, ou a malícia de certos leitores, algumas vezes cheia de desprezo? Não será que atitudes como estas revelam mais do que estamos preparados para admitir?
Haverá alguma diferença real se ambos personagens forem homossexuais? Isso realmente diminuiu o valor da história? Se ambos são homossexuais isso os torna menos corajosos, menos valorosos? Faz do livro um livro menos próprio? Faz deles menos heróis, menos capazes de enfrentar o caminho? Ou o que faz de um herói um herói é sua heterossexualidade (note-se que não usei a palavra masculinidade, porque em outras obras, o grupo de heróis inclui figuras femininas), sua disponibilidade, ao fim e ao cabo, de gerar descendência em qualquer momento?
Se Sam e Frodo são homossexuais ou não, é muito menos importante do que o fato de que O Senhor dos Anéis fala mais do que em heroísmo, guerra, ou na luta maniqueísta entre o Bem e o Mal. A obra fala sobre a capacidade do ser humano de ir além de seus limites, de desafiar o mundo que o cerca para cumprir seu destino em toda a sua plenitude. Basta ver que Frodo, como personagem, sai "aprendiz" do Distrito, para voltar mestre de si mesmo. Sam sai "criado" para voltar senhor de seu próprio caminho. O que importa não é a estrada e quem a segue, mas como a segue e o que aprende nesta estrada. Todo o demais em O Senhor dos Anéis não passa de um pano de fundo para isso.

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