Três Lágrimas Paralelas, a Capitalização do Abstracto Como Aspiração de Sentido
um ensaio crítico de João Seixas
publicada em 27.07.2002
republicada em 02.07.2003

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No entanto, é a partir destes contos, e sobretudo a partir de "A Excrescência", que os intercala, que Portela mais frequentemente maneja a terceira característica paradigmática do fantástico nacional.
A partir deste ponto, as narrativas de Portela tornam-se cada vez mais simplistas, adoptando os contornos das pequenas fábulas moralejas que constituem o output dos piores autores New Age da actualidade, como Carlos Castañeda, J.J. Benítez ou Paulo Coelho, nalguns casos precedendo-os.
A seguinte passagem dispensa comentários, servindo apenas como ponto de delimitação a partir do qual a temática da obra se começa a reduzir a uma fabulação condenatória, intelectualmente pobre, cientificamente nula, de uma simbologia paupérrima:
'Sempre queria ver a reacção (haveria, prévia à eliminação, uma reacção?, perplexidade, espanto, um tempo de compreensão que fosse um ajustamento?) quando lhe descobrissem o dorso imóvel, vibrantemente líquido, e detectassem a excrescência. E verificassem que a excrescência era o código genético.' (pág. 43).
A partir de "A Excrescência" é nítido o total desinteresse de Portela pelo género em que tenta escrever, como se tivesse resolvido assumir a sua aversão pela Ficção Científica, ou como se tão só acreditasse que quem lê ficção científica, lê qualquer coisa.
As narrativas que se sucedem reduzem-se a efabulações moralistas - da moral simplista do homem da rua, do português rural - alimentadas pela bíblia marxista, mas sem o revestimento barroco e rebuscado da liturgia romana.
Subentende-se um medo ao conhecimento científico, ao saber científico, que, como em "A Escrescência", é tratado como uma disciplina carente de rigor. Reduzido a uma terminologia vácua e sem sentido, é esvaziado do seu valor enquanto principal vector de leitura do real, e enquanto parâmetro ontogénico da Ficção Científica.
Assim, em "Spectror", uma espada de brinquedo torna-se subitamente capaz de disparar um potente laser, qual raio divino castigador da iniquidade. A impossibilidade científica é adoptada, não por um qualquer e eventual valor literário, mas apenas como expediente fácil para executar um final (pretensamente) surpreendente, que não cumpre qualquer outra função que não seja a de moderna parábola.
No entanto, se a espada de brinquedo é utilizada como instrumento de punição do desinteresse paternal pela educação dos filhos, seria interessante imaginar como lidaria Portela com a questão socialmente mais complexa da pedofilia, em que esta substituísse a espada.
Portela, porém, recusa-se a ultrapassar o patamar mais baixo da inquietação, demonstrando não uma verdadeira preocupação pelos problemas por si tratados, mas apenas a preocupação burguesa, de intelectual de sofá, que é esperada em conversas de salão de chá.
Ora, perante a postura do autor, quem perde é a obra.
Em "As Rãs", referência explícita a Aristófanes, Portela desperdiça uma vez mais a oportunidade de criar um genuíno sentimento de inquietude e subversão dos valores. Perdidas as eleições democráticas por parte dos déspotas, estes orbitam a Terra numa nave espacial fortemente armada. Quão mais ousado seria se os déspotas fossem obrigados ao exílio pelas forças democráticas vitoriosas, como única forma de garantir o Bem da Democracia.
Poderíamos então ter nas mãos um poderoso cautionary tale sobre os excessos do fervor democrático e a subversão da própria democracia. Portela, porém, escuda-se mais uma vez no mínimo denominador comum, repetindo ad nauseam o credo já ad nauseam repetido. Tanto mais que, no relato das Eleições de Atenas que opõem Címon e Péricles, se lê o 25 de Abril de 1974.
E tanto é assim, que de idêntico mal sofre "Antonino e Marcelino", o mesmo é dizer Salazar e Caetano, apenas algumas páginas mais à frente.
Também desta forma, 3LP se assume como uma patologia dentro da ficção científica; sendo a melhor ficção científica um género marginal por excelência - outlaw, chamar-lhe-ia Bruce Sterling, e outlaw não por antidemocrático, mas porque não reconhece vacas sagradas, nem mesmo as vacas democráticas -, o livro de Portela não tem outro objectivo que não seja a afirmação dos valores tradicionais.
Neste sentido, atente-se em "Corrida no Parque", um texto verdadeiramente inclassificável, que apenas acentua a impressão, que desde o primeiro conto se faz sentir, de que todo este livro é filho do ócio, escrito por preguiça em estirões de quinze minutos. Despido de qualquer lógica, e colocando a lógica robótica no centro do conto, é uma confissão involuntária de que o autor não conhece sequer os textos de Asimov.
Mas não se pense que é gratuitamente que se compara o autor americano com Portela.
Asimov sempre pretendeu que os seus robots se distinguissem dos que os antecederam, surgidos do Golem setecentista e do RUR capekiano, sobretudo na dimensão simbólica. Enquanto os robots de Capek e da tradição da pulp-fantasy dos anos 30 eram assumidamente símbolos - do homem, na sua relação com o real e da sua hubris - os robots asimovianos eram máquinas, concebidas enquanto tal, com regras específicas e para uma função específica. E aí residia o seu superior mérito.
Com o recentramento da perspectiva, a narrativa despe-se da dimensão demiúrgica do humano e assume os contornos da verdadeira ficção científico-tecnológica, permitindo ao autor explorar - de uma perspectiva racional, mais do que moral (naquilo em que ambas as dimensões se sobrepõem) - a mecânica social de um presente ucrónico.
Para Portela, porém, os robots, uma vez mais, não podem ultrapassar a dimensão simbólica do humano enquanto criador e referencial da criação, aqui reduzida a um non-sense trivial, fácil, inexigente.
"A Campânula" que, apesar de tudo, começa de forma minimamente interessante, sendo talvez o único conto da colectânea que se atreve a ser FC, termina como mais uma fábula sem sentido, caótica. Apenas um agrupamento de palavras.
Aliás, tal como "A Pedra de Pedra" e "Twilight XVIII". No primeiro, um miúdo arremessa pedras ao Sol antes de cada entardecer, levando os aldeões a crer que tem o poder de comandar o pôr-do-sol. O que poderia ser uma interessante escalpelização do conhecimento científico e da crendice popular acaba em mais um conto de contornos fantásticos, na vertente do absurdo. Ilógico, sem explicação, com a racionalidade de um cartoon de Chuck Jones.
No segundo, da mesma forma, um homem vê-se preso no interior de um espelho, sem que a situação - que seria um prato cheio na pena de um Bradbury, ou mesmo de um Lewis Carroll - chegue a ter o mínimo de interesse. Nota-se, talvez, uma influência de Borges, tão pobre que está irreconhecível.
Um outro texto de carácter bradburiano é "Amarelo". Infelizmente, a escrita não iguala, e nem sequer se aproxima à do mestre americano. Em "Amarelo", Portela apresenta-nos outra vez a ficção científica como não sendo mais do que a maquilhagem tecnofantástica aplicada a uma narrativa banal.
Aqui, uma nave capaz de atravessar uma vintena de galáxias não é dotada de uma Inteligência Artificial, mas de um piloto automático. O equipamento individual dos astronautas está equipado com contra-reactores. A nave acosta ao planeta. E 'três quartas partes da nave eram armazéns de dados. Que haviam catalogado, prévia e sumariamente analisado e armazenado.' (p. 105).
E, no entanto, estes intrépidos exploradores são incapazes de reconhecer o milheiral onde pousaram, ou o espantalho que encontram, e com o qual tentam comunicar. E cancelam a expedição ao não obterem resposta. Como um zoólogo que regressasse a casa frustrado por não ter entabulado uma conversação filosófica com uma baleia azul.
No mundo (a)científico de Portela, não existe qualquer aparelho; não existem espectrómetros de massa, nanomáquinas, MRI scanners, nada, nada, nada....
O que interessa é entregar o sem-sentido final, qual nado-morto exangue, como se se tratasse de uma novidade revolucionária no campo da ficção científica.
De certa forma, este conto presta-se ao papel de emblema de todo o volume e é aquele que melhor sintetiza o seu conteúdo: literatura fácil, dirigida a um público imbecil, capaz de acolher com um 'ah!' de contentamento o cozinhado fácil que está prestes a emborcar.
"Um Som e um Sabor", tal como "Lenda" (in A Lenda, Caminho, publicado em 1988) de Aniceto, é mais um produto do provincianismo intelectual português, daquele provincianismo de menino bem comportado, sempre à espera da pancadinha nas costas por repetir o credo que dele esperam, indelevelmente marcado por um fascínio saloio pelos conceitos abstractos. Sintoma, também ele, de uma literatura que não conseguiu fugir ao aplauso fácil que conquistam as composições do tipo 'o que fiz nas minhas férias de Verão'.
Uma nota final para "Três Lágrimas Paralelas", o único texto desta antologia que se apresenta, quase até ao último parágrafo (este é-lhe fatal, denunciando a falta de à-vontade que o autor sente com o género em que pretendeu escrever), como um todo literário coerente. O conto que dá o título a esta colectânea eminentemente esquecível não é mais do que uma literalização - literariamente conseguida? - do axioma popular de que por detrás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Neste caso, uma alienígena que está por detrás das obras de Leonardo, Henrique, Rei de Portugal, e Lord Byron.

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