Três Lágrimas Paralelas, a Capitalização do Abstracto Como Aspiração de Sentido
um ensaio crítico de João Seixas
publicada em 27.07.2002
republicada em 02.07.2003

Em PDF || Página: 1 | 2 | 3

ISBN: 989-8072-17-2
ISBN (13): 978-989-8072-17-7
Três Lágrimas Paralelas (3LP) é simultaneamente um objecto-quase e um quase-objecto. E em mais do que um sentido. Com efeito, este volume de Artur Portela é quase um livro de Ficção Científica, e é um livro de quase Ficção Científica.
E o que lhe falta para preencher qualquer uma das suas virtualidades?
Falta-lhe ser Ficção Científica... e falta-lhe ser um livro.
Passo a explicar.
Se a trilogia Perelandra, de C. S. Lewis (Out of the Silent Planet; Perelandra; That Hideous Strength), já foi considerada como anti-FC, no sentido de assumida contraposição à ideologia stapledoniana e gernsbackiana, servindo assim de certa forma como demarcação do que viria a ser a Ficção Científica Moderna e Pós-Moderna, 3LP é anti-FC no sentido pós-moderno do termo, assumindo-se como um objecto literário que nega a sua própria natureza.
Na verdade, este volume é o objecto pós-moderno definitivo, no sentido em que se constitui uma nulidade intrínseca e, no entanto, existe enquanto objecto físico.
Senão, vejamos:
3LP não é um livro. Não o é pelo menos no sentido literário do que entendemos por livro, como narrativa ficcionada contida entre capas. Ou narrativa ficcionada codificada no fluxo de bits de um e-book. O conjunto de narrativas nele incorporadas não possui uma história, não possui personagens, e não possui histórias vividas por personagens (nem mesmo personagens que vivam na história). Mas parece ter uma ideologia que move a escrita.
E não é ficção científica. Muito pelo contrário. É, como já se disse, anti-ficção científica.
Só que é anti-ficção científica num sentido visceral, inconsciente, não assumido. É anti-ficção científica porque é escrito por alguém que, aparentemente, não gosta de ficção científica, não conhece ficção científica e, no entanto, a ela recorre animado apenas pelo estatuto fashionable que ela possui, ou porque intui as potencialidades do género.
Nem se pode dizer, como de Lewis, que ele jogue com as regras do género ou que de alguma forma as subverta.... ou que simplesmente se recuse a utilizá-las, desconstruindo o género à maneira de Baudrillard ou Tevis.
Não. Ele simplesmente desconhece que tais regras existem!
Artur Portela quer escrever algo que não sabe o que é e, dessa forma, Artur Portela cria a Ficção Científica. Nesse sentido, é um anacronismo. É um autor que poderia ter escrito 20 anos antes de Wells, Verne ou Poe, mas que ao tempo de E.R. Burroughs, A. Merrit e E.E. "Doc" Smith estaria já irremediavelmente datado.
3LP é assim um inesperado exercício em arqueobibliologia. É o directamente oposto à Ficção Científica de João Barreiros, caracterizada por um apurado conhecimento das regras do género, e de uma afirmação e subversão das mesmas, segura, firme e eficaz.
Infelizmente, é Artur Portela e não João Barreiros quem constitui o Paradigma da Ficção Científica Portuguesa.
E em que se traduz esse paradigma no caso concreto de 3LP?
Em primeiro lugar, na terminologia.
Portela não faz uso, em qualquer instância, de uma terminologia científica. Não lhe encontramos uma referência técnica. Uma definição objectiva. A sua linguagem é eminentemente metafórica, de uma tentada poesia à outrance ultrapassada.
"Os Baleeiros", a primeira narrativa desta colectânea, trata (aparentemente) do regresso de uma humanidade estelar a uma Terra devastada, radioactiva, oceânica... acima de tudo, anímica. Os Astronautas, como são referidos, não se servem de instrumentação, de satellite surveys ou de sondagens atmosféricas ou geológicas. Servem-se de tábuas de localização! E, por isso, não reconhecem o planeta a que regressam.
'Os Astronautas esperam poder regressar a tempo, antes da colagem das pálpebras e dos lábios. Quando partiram, buscavam, crê-se, outro sistema. Encontraram-no, banalmente: a tecnologia é uma rotina. A viagem é o regresso, e o regresso é o acontecimento: a compreensão do rumor fragmentado, contraditório e despistante que sintonizam.' (pág. 12).
A tecnologia é, de facto, uma rotina. Tal bastaria para identificar este conto como sendo uma narrativa originária de um país, não só atecnológico, como anti-tecnológico, como o era o Portugal dos anos 80. Panspérmico.
Toda a narrativa é dirigida à Terra enquanto entidade viva e anímica. Ela é a personagem... paradoxalmente uma personagem morta, capaz de suscitar ainda algumas imagens interessantes (rinocerontes no cosmódromo, não deixa de invocar uma confluência quinhentista com os modernos Descobrimentos além-estelares), mas que se reduzem cada vez mais a uma incessante diarreia verbal, sufocante e pesada: 'A memória é uma carcaça, coluna vertebral de um bisonte com inúmeras costelas flutuantes ramificadas, doida catedral, hallenkiershe, com farpões de baleeiros apontados ao mar oposto, arcobotantes presos à pele do planeta como cordas enroladas em estacas de zeppelins, vazia, com rosáceas monócromas, poalhando um poço de poeira suspensa.' (pág. 15).
A ausência da terminologia técnico-científica contrasta vivamente com as inúmeras referências aos processos arcaicos das economias de subsistência. Na perspectiva pastoral de Portela, o progresso científico e as economias de subsistência situam-se em pólos diametralmente opostos no mundo moderno, sendo que o primeiro é culpado, a segunda vítim(izad)a.
Transpira aqui uma ingénua ideologia anti-tecnológica, oriunda de um marxismo há muito moribundo, que confunde ciência e tecnologia, tecnologia e capitalismo, capitalismo e exploração dos oprimidos.
Neste sentido, da conjugação do pesanteur, da anti-tecnologia, do próprio clima emocional, estaríamos em presença do primeiro exemplo de fado da era tecnológica. E aqui este livro manifesta-se, uma vez mais, como o objecto pós-moderno por excelência. Fosse Portugal uma nação tecnológica, capaz de colonizar as estrelas, e seria este o único tipo de Ficção Científica que aqui seria produzido. Uma ficção científica chorosa, lamechas... incapaz.
A negação da Ficção Científica e da Modernidade está bem marcada no segundo conto deste volume, "Fundação".
Também esta narrativa trata de um regresso, como se o autor não se pudesse libertar desse lastro nacional que é a Saudade. De um regresso a uma Terra igualmente mudada. Quem chega desta vez ('O céu era de fogo e chumbo. E eles desceram dos altos', é como se inicia o conto) regressa para repor a situação original, a ordem natural do mundo. Regressam contra 'esses novos, pequenos e insignificantes predadores (...) incapazes de saber a lei natural do sangue' (pág. 22) para os reduzir à sua função 'sob a base da base'.
Quem regressa, desta feita, são os dinossauros.
Vindos de onde? De que forma? Sofrendo que mutações?
Isso não interessa. Tal como os anjos, vieram do alto.
A mensagem, mais uma vez, é de imobilismo. O Regresso nunca é triunfante; é Redentor. Não pode haver mudança, diz-nos Portela, quando a Ficção Científica é a literatura da mudança. Muito menos mudança tecnológica. Os costumes e as tradições têm que ser repostas contra a relativização trazida pelo conhecimento científico. A própria revolução esvazia-se de sentido.
E também aqui o autor assume o anticientifismo serôdio de Portugal, assumindo a absurda equação que identifica os dinossauros com criaturas ultrapassadas, irremediavelmente paradas no tempo. Artur Portela literaliza essa imagem, elevando-a a símbolo de um imobilismo cultural absolutamente castrante.
Jorge Candeias, em artigo publicado no fanzine brasileiro MEGALON, refere-se a Artur Portela e ao seu livro como sendo 'fantástico português em estado puro'. Dificilmente se poderia encontrar melhor definição.
Se a primeira característica distintiva do paradigma do fantástico nacional é exactamente o seu carácter anti-tecnológico, a segunda, que deriva directamente da primeira, não pode deixar de ser o onfálico complexo de inferioridade que exsuda da castração do Quinto Império.
Tal manifesta-se imediatamente em "Wenceslau", conto em que Portela não consegue utilizar o potencial onírico e distópico em favor de uma narrativa coerente. Refugiando-se em obscuras referências às Cartas do Japão, de Wenceslau de Moraes, constrói o futuro próximo de um Portugal ocupado pelo Japão - ou, pelo menos, economicamente ocupado pelo Japão, apropriando-se de uma fobia que era própria dos Estados Unidos dos anos 70 e 80 -, sem contudo o utilizar para o que quer que seja.
Aliás, se em "Wenceslau" se nota uma certa inferioridade politicamente correcta em relação aos EUA, através da figura do último (?) americano aniquilado pelos japoneses, "Filipe II" - talvez um dos contos melhor conseguidos e completamente alienígena ao tema desta colectânea - lida com a típica inferioridade portuguesa em relação à nossa vizinha Espanha.

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